sexta-feira, 23 de novembro de 2007

A AMÉRICA LATINA SOMOS NÓS (OU SÓ UNIDOS VENCEREMOS)




MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 23 DE NOVEMBRO DE 2007



Chavez com Álvaro Uribe, da Colômbia, Evo Morales, da Bolívia, e Alan Garcia, do Peru. Posições diferentes, mas convergentes na colaboração entre países da América Latina.





"É preciso transformar, por determinado tempo, nações como a Bolívia em uma espécie de protetorado." (General Hugo Bethlen, no "Jornal do Brasil" de 21/06/71, citado no livro "Bolívia, com a pólvora na boca", de Júlio José Chiavenatto)
Como eu, imagino que você assina TV a cabo. Morando detrás da serra dos Três Rios, não tenho outra alternativa, a não ser a parabólica, que utilizo especialmente para sintonizar a TV Diário, do meu querido Ceará.
Na NET, escolhi o pacote "digital", com o maior número possível de opções. Nem sei quantos canais são, mas não são poucos. Há de tudo para ver, mas não existe uma só estação de TV da América Latina. Nem a mexicana, que já fez parte da grade num passado remoto.
Por quê? Será que não há nenhuma televisão nos 25 países do nosso continente que possa ser captada aqui, no Brasil? Claro que há. Mas os cérebros que controlam as emissões de informações eletrônicas, pelos jornais ou pelo entretenimento, jogam pesado.
Tratam-nos, nesse campo, como colônias culturais dos Estados Unidos, que preenchem mais de 90% das grades, com canais que mostram de tudo e são responsáveis pela maior soma de tiros disparados num só dia, de tramas sórdidas, traições, trapaças, assassinatos ou da propagação do modo de vida insosso dos norte-americanos.
E por que não incluem canais dos países vizinhos? Você pensa que é por acaso? Claro que não, repito. Essa decisão está relacionada com a estratégia da potência do norte de manter a América Latina "longe da América Latina".
Conflitos fabricados
Eis a questão. Se tomarmos outros exemplos, vamos nos deparar com um jogo de intrigas e manipulações voltadas exclusivamente para manter vizinhos cada vez mais distantes, uns dos outros; cada vez mais desconfiados, cada vez mais hostis. Se possível, em conflito.
No passado recente, os generais Golbery Couto e Silva (o grande articulador do golpe de 64) e seu discípulo Meira Mattos desenvolveram uma "geopolítica" que nos colocava diante da possibilidade de guerra com a Argentina e outros países próximos.
Então, grassava a idéia de que para se tornar uma potência regional o Brasil precisava manter uma hegemonia militar na América do Sul ou, como escreveu o professor André Santos da Rocha: para os dois militares "o Brasil deveria pensar numa articulação político-territorial sobre o "`eartland sul-americano', que estava baseada nas idéias de Halford Makinder sobre a teoria do `Heartland'- área central.
Segundo Makinder, quem dominasse a área central possuiria grandes possibilidades de reger o poder regional/mundial". Esse pensamento tinha a ver com as guerras do passado, que foram adredemente alimentadas pelas potências estrangeiras e pela indústria bélica. Enquanto nos preocupávamos com as "ameaças" dos vizinhos, iamos nos transformando em satélites dos EUA. Nós e nossos vizinhos, compelidos por uma nefasta intermediação que faz com que nosso comércio regional seja expresso em dólares norte-americanos.
Com o aparecimento de ditaduras militares em vários países da América do Sul, estabeleceu-se uma colaboração tática, baseada no que havia de comum entre tais regimes: ampla rejeição popular e uso abusivo das forças repressivas. Como esses regimes se exauriram em face dos monstros que criaram, tornando a governabilidade produtiva algo só possível com a manipulação das esperanças dos cidadãos numa sociedade aberta e democrática, uma nova página se abriu na América Latina.
Civis servis e os rebeldes
A partir de 1982, o banqueiro David Rockfeller assumiu a liderança de uma estrutura destinada a substituir e enfraquecer as Forças Armadas, com o aproveitamento de lideranças civis cooptáveis e mais maleáveis no desempenho da função de prepostos do sistema internacional. Foi então que nasceu a ONG Diálogo Interamericano.
A idéia era formatar uma nova relação econômica, dentro do espírito da globalização, em que os blocos regionais seriam apêndices de Washington. O próprio Mercosul foi estimulado como uma aliança restrita a quatro países, pelo governo norte-americano, que concebia a possibilidade de subempreitar entre o Brasil e a Argentina o controle dos países mais pobres.
Esses formuladores não contavam que os seus novos aliados tivessem desgastes tão sumários. Aos poucos, as políticas de tutela começaram a ser contestadas por alguns governos, com um agravante: eles buscavam e buscam uma aproximação regional, com vista à formação de um sólido bloco latino-americano, forte, totalmente independente, com maior abertura para outras partes do mundo, especialmente a Europa e a Ásia.
É o crescimento de um sentimento de que é possível unir a América Latina que leva metrópole decadente, com sua moeda em queda livre, a se desdobrar em intrigas e baixarias, quase todas fracassadas. Hoje, por exemplo, não dá para jogar os países vizinhos contra a Venezuela, cujo crescimento e redução da pobreza são reconhecidos pela ONU e se irradiam beneficamente para seus vizinhos.
As grandes obras na Venezuela são realizadas por empreiteiras brasileiras, enquanto o petróleo venezuelano é vendido a preços reduzidos em países pobres, como a Nicarágua e Honduras. Ao mesmo tempo, 30 mil médicos cubanos prestam serviços na região, contribuindo para a redução de grandes problemas de saúde.
Se países como o Brasil se desvencilharem da tutela dos grandes grupos internacionais e assumirem com ações concretas um projeto de integração e parceria leal com seus vizinhos, teremos uma nova potência - a América Latina. Juntos, os latino-americanos representam a terceira população do mundo, com 580 milhões de habitantes.
E só unidos nós poderemos reduzir as diferenças com as duas grandes potências de hoje: os Estados Unidos, com 301 milhões de habitantes e um PIB de US$ 13.250.000.000.000,00; e a União Européia, de 25 países, com 490 milhões de habitantes e um PIB de US$ 12.600.000.000.00,00. Embora tenha mais habitantes, o PIB de toda a América Latina não passa de US$ 2.284.723.000.000,00.
Nós falamos praticamente a mesma língua e temos problemas parecidos. Não podemos perder de vista a possibilidade de nós mesmos resolvermos nossas dificuldades, sem a interferência deletéria das multinacionais, que não sossegam enquanto não levar um dos nossos países a uma guerra com outro, nem que seja apenas econômica, mas igualmente letal para nosso futuro.
coluna@pedroporfirio.com

domingo, 11 de novembro de 2007

UM ESTADO PERDIDO NAS COMUNIDADES

MINHA COLUNA NO JORNAL POVO DO RIO DE 12 DE NOVEMBRO DE 2007 Em entrevista a Ana Maria Tahan e Rodrigo Camarão, publicada ontem no JB, o governador Sérgio Cabral definiu com todas as letras a visão do seu governo sobre as comunidades carentes: ação policial num ambiente de guerra e “fim do paternalismo”. Isso explica todos os recordes de execuções policiais nas favelas e conjuntos habitacionais. E o porquê da desativação dos programas sociais, com o isolamento da Secretaria de Ação Social, dirigida sem o mínimo de motivação por Benedita da Silva. Ele afirmou sem rodeios: “vamos parar com a relação paternal. A política da bica d'água se sofisticou, mas permaneceu. Temos de quebrar essa política. Fazer intervenções para valer”. Depois de acentuar que estava em guerra e isso tem suas conseqüências, o governador declarou: “Não estou disputando com o tráfico. A área precisa ser recuperada pelo poder público. Não é o Cabral versus o tráfico. Romantizaram o tráfico, romantizaram a favela”. Essa visão explica a mais completa omissão do Estado em relação às áreas marginalizadas, que há 11 meses só têm notícia da presença policial em cinematográficas operações, como aquela na antiga Fazenda Coqueiros, hoje conhecida como favela da Coréia, filmada ao vivo e a cores. Seria combater a “relação paternal” manter virtualmente fechada a Casa do Paz do Jacarezinho? Ali, em dois anos, foram realizados mais de 200 mil atendimentos em todas as áreas, inclusive com o funcionamento de um curso de segundo grau adaptado à realidade da comunidade. Lá, nem o diretor foi nomeado até hoje. Seria abandonar a “relação paternal” paralisar o projeto que asseguraria o fornecimento de água para o Jacarezinho, uma comunidade de mais de 70 mil habitantes? Lá, depois de muito esforço nosso, a Prefeitura construiu um castelo d’água com a capacidade de 250 mil litros, usando recursos do “favela-bairro”. A obra está pronta desde fevereiro, mas vai acabar virando um heliporto para os helicópteros da polícia, já que até hoje a CEDAE não fez a ligação com a rede e não há nenhuma indicação de que tal providência esteja em seus planos. Se o governador quer mesmo enfrentar a violência, não pode abandonar os cidadãos que vivem em comunidades, que passaram a ser vistas como guetos suspeitos, para os quais o Estado só tem uma mão, a da polícia. Agindo assim, com essa cabeça, o governador não vai nos proporcionar nenhuma segurança e ainda terá que investir em novos cemitérios. coluna@pedroporfirio.com

sábado, 10 de novembro de 2007

O SEQÜESTRO DO RACIOCÍNIO E O APAGÃO DA INTELIGÊNCIA

“Jamais aceite como exata coisa alguma que não se conheça à evidência como tal, evitando a precipitação e a precaução, só fazendo o espírito aceitar aquilo, claro e distinto, sobre o que não pairam dúvidas”. René Descartes, filósofo francês (1596-1650) Nos dias de hoje, nada me assusta, deprime e revolta tanto como o seqüestro do raciocínio. Nada é mais danoso e demolidor. Nada causa tantos males à espécie humana. Não. Eu não estou falando da corrupção da consciência. Nem da corrosão do caráter. Nem da desfiguração do sentimento. Não me refiro à extinção dos valores morais, éticos e religiosos que um dia pesaram nas atitudes. Isso o dilúvio da hipocrisia em cascata afogou em sua devastação fulminante. Há sobreviventes que ainda respeitam esses valores jurássicos, admito. Mas são espécies raras, em ostensivo processo de extinção. O raciocínio seria a última arma da natureza humana. Seria uma ferramenta disponível como uma bússola norteadora. Você podia ter sido amputado de valores tornados subjetivos. Poderia estar inoculado do vício do mais abjeto e desesperado individualismo. Mas, ao dispor da capacidade de raciocinar, de pensar, respeitaria um novo tipo de cânone, amparado no instinto da sobrevivência. Não importava seu juízo de valores. Mas o cérebro falava mais alto na formulação do comportamento. Não era o ideal. Antes, a solitária sobrevivência da capacidade de raciocinar se constituía num certo recurso do pragmatismo. Na busca do êxito, o raciocínio pode destituir-se de todo e qualquer constrangimento. Mas, pelo menos, é um elemento de avaliação. Que pode ser usado para o mal, mas também para o bem. Um certo lamento Para variar, você pode estar cismando sobre a própria natureza da nossa conversa de hoje. Tantos e tão graves acontecimentos estão ocupando as páginas dos jornais. E, no entanto, cá estou eu empacado na mais recente descoberta: seqüestraram o raciocínio. É verdade. Eu bem que pensei em escrever sobre o mais novo desastre aéreo – o avc que paralisou a jovem BRA, subtraindo mais 1100 empregos diretos e uma generalizada desconfiança sobre o futuro da aviação comercial brasileira, submetido a um vôo cego que, logo,logo nos levará ao convívio com o inglês nas rotas domésticas. Queria, sim, confesso, repetir pela milésima vez: a desarticulação da VARIG foi apenas o ponto de partida de uma aventura de notas marcadas. Com o golpe que pôs no chão a mais completa companhia aérea brasileira, o desmonte de todas as empresas do ramo será inevitável, abrindo um filão suculento para a internacionalização do nosso espaço aéreo. Ou você acha que o duopólio vai segurar o tranco? Queria comentar essa tragédia anunciada, mas a necessidade de falar dos elementos essenciais que levam a esse e a tantos outros desastres me impõe o lamento da falta de raciocínio que assola o país. Não importa se você é grego, troiano ou não faz parte das guerras e das torcidas apaixonadas. Você pode achar que é o que achar que é, mas não pode abrir mão do raciocínio, como tem feito sem perceber, porque, além da crosta que reveste seu cérebro de meias verdades, há todo um aparato especializado em turvar o ambiente que produziu um imenso cárcere privado, virtual, invisível mas dotado dos poderes da bruxaria cibernética. Não sei se você terá suficiente disposição para parar e pensar. Nem que seja só por um instante.. Se você estiver disposto a resgatar seu cérebro, bem que poderá retomar sua capacidade de raciocínio. Não precisa mudar quanto ás as suas antigas concepções. Mas precisa urgentemente balizar suas atitudes na busca do respeito que todos mereceremos. O pior que lhe acontece é abrir sua guarda ao primeiro sussurro que satisfaça seu momento emocional ou seu parco estoque de conhecimentos. Você (como eu) não é obrigado a rezar pela mesma cartilha por conta de uma determinada formação que engendrou suas convicções. Cérebros travados O tempo, mais do que ninguém, é a melhor fonte das lições. E o raciocínio é a arte mais apurada da percepção do legado de cada dia vivido. No momento em que você abre mão de raciocinar trava todas as suas faculdades mentais. Torna-se um cidadão de cérebro terceirizado, facilmente manipulável. Pior. Renuncia ao que o distingue dos demais animais – a inteligência. Abre mão do maior dos alimentos, o conhecimento. Nessa seqüência de recuos fatais, perde o juízo crítico. Vira um mero repetidor dos outros, principalmente dos que detêm os meios de comunicação de massa. Vejo que isso está acontecendo em larga escala e em todas as camadas da sociedade humana. Os mais espertos dão as cartas e escravizam os que transferem a eles o direito de pensar e decidir. Isso é alarmante como um grande vírus da inércia que se alastra celeremente por todos os seres humanos. Vou dar um exemplo: a sociedade democrática nunca existiu. Ela devia ser a expressão da vontade livre das grandes maiorias. E, no entanto, é a expressão mesquinha de uma ínfima minoria. Não estou falando aqui da hegemonia de uma classe sobre outra. Quem o induz a aceitar a escravidão e a impostura é um bolsão de poucos controladores da mente humana. Esse núcleo monitor apostou na ascensão da mediocridade e no primado da incompetência na gestão de Estado, obtendo a desfiguração dos poderes republicanos e abrindo caminho para os poderes paralelos, que são os verdadeiros senhores de todos os movimentos. Conseguiu-se o mais trágico dos desvios – a abolição dos compromissos básicos no exercício dos poderes públicos; e aí não falo só dos que escolhemos pela via do equívoco. De um modo geral, os cidadãos que deixaram de raciocinar estão expostos a decisões ilegítimas, a manobras torpes, ao crescimento da capacidade de sedução obscena. Qualquer um, que tenha uma fonte de poder, sente-se à vontade para passar por cima de tudo como um trator desgovernado e a sociedade que renunciou às suas prerrogativas críticas acaba aceitando como um fato consumado. Isso acontece infelizmente porque você, como a maioria dos brasileiros, já não se vale dos elementos vitais, como o censo de observação, a atenção devida, o exercício da percepção, o patrimônio da memória, a essência do raciocínio, o juízo de valor, a faculdade da imaginação, o acervo do conhecimento, a força do pensamento e a expressão de sua própria compreensão dos fatos. Não sei se você me entendeu hoje. Mas se você parar para pensar, como já referi, verá que tudo de ruim que possa acontecer a todos nós é responsabilidade imperdoável de cada um. coluna@pedroporfirio.com

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

UMA ANISTIA AMPLA PARA REMOVER O LIXO AUTORITÁRIO (II)

MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 2 DE NOVEMBRO DE 2007 "A anistia não é nem uma apologia nem uma transação. A anistia é o olvido, é a paz" Rui Barbosa, Discurso no Senado, 5 de agosto de 1905 Não tenho a menor dúvida: por mais que o processo de anistia, no seu sentido lato, seja condição essencial do restabelecimento do estado de direito, a sua plena execução é o maior desafio de nossos dias. Sob os mais variados pretextos, as resistências ao reconhecimento devido às vítimas dos anos de exceção, casuísmos arbitrários e perseguições infernais ainda permanecem instaladas em trincheiras invisíveis e podem tornar o exercício da reparação um ato de heroísmo dos encarregados institucionais dessa missão. Digo isso não apenas em função de uma meia dúzia de e-mails que recebi com as tinturas da intolerância mais doentia. Os fatos têm mostrado que todos os esforços para abreviar o sofrimento de pessoas atingidas brutalmente em suas vidas vão encontrar óbices onde os órfãos da ditadura puderem influir. Esses recalcitrantes sobrevivem como fiéis depositários da violência de Estado e operam com desembaraço, sobretudo porque, afinal de contas, nenhum verdugo ou usurpador dos anos de chumbo foi sequer questionado. Isto, ao contrário do que aconteceu em outros países como o Chile, onde o general Pinochet, sua família e alguns de sua entourage foram parar na prisão como ladrões do erário e assassinos hediondos; e da vizinha Argentina, onde em 1985 foram condenados à prisão perpétua como homicidas e ladrões o general Jorge Rafael Videla e o almirante Emílio Massera (http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_18121985.shtml). No Brasil, no entanto, todos os algozes foram para casa com o compromisso da impunidade e a certeza de que continuariam dando as cartas naquilo que lhes interessava. Não foi por acaso que o sr. José Sarney, principal preposto civil da ditadura, "mudou de lado" e se declara hoje um defensor intransigente da democracia, com acesso à copa e a cozinha dos palácios do poder. Bolsões da intolerância Por isso, não me surpreendeu a correspondência de um advogado de Mato Grosso do Sul, que escreveu textualmente: "Era imperioso que fossem perseguidos, derrotados e, SE NECESSÁRIO, MORTOS. Nesse aspecto, o tratamento que a eles, inimigos da pátria, era dispensado, nada tinha de anormal. Registre-se, por pertinente, que a malfadada Comissão de Anistia do Ministério chefiado por TARSO BERIA, está atulhada de elementos adoradores do comunismo e que sequer sabem exatamente o seu significado. São uns párias que, assim como aqueles toupeiras de 1964, VÃO OBRIGAR OS NOSSOS HONRADOS MILITARES A, UMA VEZ MAIS, ASSENHOREAR-SE DO PODER". Como disse na coluna anterior, é preciso que a sociedade saiba toda a verdade sobre a natureza do trabalho da Comissão de Anistia, como instrumento centralizador dos processos de reparação. É preciso que saiba que, se não fosse pela oportuna reflexão do presidente Paulo Abrão Pires Junior, um jovem mestre do direito público (escolhido até por não ter vivido as torpezas daqueles anos, o que o imuniza de qualquer ato emocional), os processos que ainda dependem de julgamentos levariam no mínimo 15 anos em suas prateleiras. Embora o Ministério da Justiça tenha ampliado sua equipe técnica, incluindo jovens advogados, me parece fora de propósito que seus conselheiros sejam "voluntários", quando qualquer conselho de qualquer órgão público ou estatal paga muito bem a quem não tem um décimo de sua responsabilidade, até porque não lida com expectativas humanas, algumas acumuladas por mais de quatro décadas. Por conta das resistências cegas de quem tem assento em áreas do poder, sobrevive ainda uma certa doutrina restritiva em relação, sobretudo, aos militares vitimados pela intolerância. O que seria a melhor das leis - a 10.559 - por sua abrangência, acabou configurando uma situação desconfortável para os militares que tiveram seus direitos reconhecidos. Ao ser editada ainda como Medida Provisória, essa Lei contrariou em alguns aspectos os fundamentos da Constituição de 1988, que diz expressamente em seu artigo 8º das Disposições Transitórias: "É concedida anistia aos que, no período de l8 de setembro de l946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18 de 15/12/1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864 de 12/09/1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividades previstas nas leis, regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos". Fazer Justiça já Esses mesmos bolsões de resistência procuram por todos os meios impedir as reparações aos militares subalternos, especialmente os cabos da Aeronáutica, onde o sistema de "licenciamento" foi modificado por uma Portaria que à primeira vista não tinha nenhuma conotação política. Mas que funcionou como uma permanente ferramenta de depuração, como demonstrou o antigo conselheiro Ulisses Riedel, cujo parecer serviu de base para a concessão de anistias, indevidamente anuladas depois. O momento hoje exige uma verdadeira retomada do movimento pela anistia de verdade, que precedeu a retomada do Estado de direito e balizou as várias leis que serviram para reinserir o Brasil no mundo civilizado. Neste sentido, considero de fundamental importância a presença maciça dos democratas na audiência pública que o presidente da Comissão de Anistia fará no plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, nesta segunda-feira, dia 5, às 14 horas. Só com a atuação dos cidadãos, a Comissão da Paz poderá superar seus próprios desafios, sobretudo em matéria de tempo. Os que ainda dependem do pronunciamento daquele plenário estão com as cabeças brancas e já sofreram mais da conta. É hora de estabelecer uma relação direta, de forma a assegurar que todos os direitos sejam garantidos. Quando digo direitos, nada mais peço. Sem sua observância na questão dos perseguidos políticos, teremos sempre um flanco aberto e um ambiente de ambigüidade cristalizado. coluna@pedroporfirio.com

UMA ANISTIA AMPLA PARA REMOVER O LIXO AUTORITÁRIO (I)

MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 29 DE OUTUBRO DE 2007 “Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada a serviço do Direito. O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas”. Desembargador Bento Moreira Lima, em carta ao seu filho, cadete Rui Moreira Lima, em 31 de março de 1939 O major-brigadeiro Rui Barbosa Moreira Lima é um dos maiores vultos das nossas Forças Armadas. Sua história se confunde com a da FAB, de que foi precursor. Seu batismo de fogo se deu em plena segunda guerra mundial, nos céus da Itália, onde desembarcou no porto de Livorno com outros 465 homens do Grupo de Aviação de Caça da Força Expedicionária Brasileira no dia 6 de outubro de 1944. Lá realizou 96 operações de combate, teve sua primeira promoção e ganhou suas primeiras condecorações: Cruz de Aviação fita A, Campanha da Itália e Presidential Unit Citation (EUA). Maranhense, filho de um desembargador humanista, festejou 64 anos de casamento com dona Júlia no dia 26 de outubro passado. Nesse dia, depois de sucessivos temporais, o sol se fez. Foi quando, aos 88 anos, numa tarde inesquecível, recebeu no emblemático auditório da ABI o jovem mestre em direito público Paulo Abraão Pires Junior, presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, acompanhado do também mestre em direito Sérgio Ribeiro Muylaert, seu vice. Com o brigadeiro, mais de mil brasileiros, alvos do arbítrio de um regime que fazia vítimas pela volúpia da perseguição “preventiva”. Como se tivesse travando um novo combate, agora em terra, e apenas com as armas da razão, o nosso paradigma de patriotismo e dignidade colocava frente à frente aquele que melhor entendeu sua missão reparadora, apesar de calouro no cargo, e uma parcela de nossa história humana, em sua quase totalidade militares que tiveram suas carreiras ceifadas por atos de arbítrio naqueles anos sombrios de tormentas e luto. Lá estávamos, para testemunhar os depoimentos, o presidente da ABI, Maurício Azedo, a deputada Laura Carneiro, eu e os representantes do senador Marcello Crivela e da deputada Solange Almeida. Na singeleza de sua exposição, o brigadeiro Rui Moreira Lima explicou que convidou o presidente da Comissão de Anistia por uma questão de economia: a grande maioria daqueles que tiveram suas carreiras interrompidas não podiam ir a Brasília saber a quantas andam seus processos de reparação. O presidente Paulo Abraão respondeu, informando que realizará outras audiências públicas fora da capital. Estará novamente no Rio dia 5 de novembro, numa audiência na Câmara Municipal, por minha iniciativa. Nesse novo encontro, além de dar continuidade às questões dos militares perseguidos, ouvirá depoimentos dos segmentos da sociedade civil, também duramente atingidos com as prisões, demissões, exclusões, exílio, banimento e toda sorte de violência praticada por um regime que alçou ao poder de forma ilegítima, derrubando um governo eleito e consagrado num plebiscito, e rasgando o mais sagrado dos documentos de um país, a sua Constituição. A Lei violada No princípio era a Lei. Aos trancos de barrancos, depois de resistir bravamente à conspiração que levou ao suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954; à tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino, em 1955; a duas sedições militares no governo JK (os rebelados foram anistiados e voltaram seus postos), e ao golpe que queria impedir a posse do presidente João Goulart, em 1961, supunha-se que a Constituição de 1946 estava blindada contra novos assaltos castrenses. O Brasil daqueles dias registrava os melhores índices de desenvolvimento econômico, o mais elevado salário mínimo, a menor taxa de desemprego, os mais luminosos sinais de progresso, com reflexos numa política de educação de grande alcance, na qualidade dos serviços públicos de saúde e até nos primeiros sucessos esportivos com duas copas mundiais de futebol. Então, discutíamos as verdadeiras reformas de base, começando por medidas concretas no campo, sempre dentro da legalidade, da mais ampla liberdade de imprensa e do convívio entre forças políticas opostas. O povo resgatava sua auto-estima. Para a grande potência do norte, isso era uma ameaça muito maior do que a revolução cubana. Para onde o Brasil fosse, a América Latina iria. A questão deixou de ser interna, para entrar na agenda dos Estados Unidos e suas agências de espionagem e jogo sujo. As próprias tropas, tradicionalmente legalistas, foram tomadas de surpresa por uma conspiração de Estado Maior, monitorada pela embaixada dos EUA, que culminou com um golpe fulminante: em menos de 48 horas, quatro estrelas de todas as armas assumiram o controle das instituições, levando o presidente ao exílio num ato de tal violência que levou o próprio deposto a abrir mão da resistência com que Leonel Brizola pretendia repetir a mesma epopéia de 1961. Aconteceu o que Luiz Carlos Moreira, capitão de mar e guerra, e hoje advogado brilhante, definiu no ato da ABI como cristalização da ilegalidade e da ruptura do regime de direito. A partir de 1 de abril de 1964 o dia da mentira estendeu-se por vinte anos. Tudo se resolvia com o uso das ferramentas de uma ditadura sem acanhamento. Desde aquele então, milhares de brasileiros passaram a percorrer verdadeiros calvários. Muitos morreram sob tortura e em operações de extermínio, como está documentado no livro “Direito à Memória e à Verdade”, publicado com coragem e serenidade pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Como não poderia deixar de ser, a ditadura nos legou um lixo autoritário manchado de sangue, terror e lágrimas. O restabelecimento do regime de direito ainda é uma conquista tênue, constrangida por sua trágica ambigüidade. Num erro fatal, as novas gerações de oficiais, profissionais por excelência, que não têm nada a ver com o inferno daqueles anos cruéis, parecem agir corporativamente como salvaguarda da impunidade. Aqueles que mancharam as sagradas fardas de nossas Forças Armadas na prática da tortura e de assassinatos indefensáveis ganharam a anistia, recebendo tudo o que “tinham direito” e desfrutando de todas as regalias. Já os perseguidos, atingidos por todo tipo de arbítrio, até vitimados por portarias políticas só porque pareciam vocacionados para atos de liderança, esses ainda esperam pela reparação devida. Agora, 43 anos depois da instauração do regime ditatorial, responder em tempo hábil aos clamores dos perseguidos é o grande desafio da Comissão de Anistia, cujos conselheiros trabalham como voluntários, sem nenhuma remuneração, fato que, a meu ver, já demonstra o desdém do Estado em relação a uma missão que é a primeira condição para selar o regime de direito e consolidar instituições perenes। coluna@pedroporfirio.com