domingo, 26 de agosto de 2007

A JUSTIÇA E OS SONHOS DE UM ESTUDANTE DE DIREITO

Pedro Ivo, esperança no Direito


A morte de Sócrates, o mestre dos jovens de todas as épocas*
"Parece que as cabeças dos homens mais notáveis mínguam quando se reúnem, e que onde há mais sábios, há também menos sabedoria. Os grandes grupos prendem-se tanto aos momentos e aos vãos costumes, que o essencial não vem senão depois".

Montesquieu,autor do “Espírito das Leis”
(1689-1755).


 


Já está fazendo um mês que meu filho de 19 anos ingressou numa respeitada Faculdade de Direito. Pelo que temos conversado, ele está encantado.  Já no primeiro dia, foi seduzido pelos conhecimentos e a forma de relacionamento da professora de Introdução ao Direito, uma desembargadora.
Depois, foi ganho pelas aulas de filosofia. Está apaixonado por Sócrates e, ao contrário da época de colégio, aproveita todo o tempo disponível para ler. No momento, devora a República de Platão. E mais faz, com a liberdade de que desfruta desde as calças curtas, para inteirar-se de tudo que diz respeito ao caminho que escolheu.
Esse envolvimento de um jovem com o direito me preocupa – eu, um idoso de 64 anos que já passei por poucas e boas, tanto nos idos do arbítrio como nesta década da Constituição cidadã.  A última foi a decisão de um desembargador de plantão, que, sem tomar conhecimento do Código de Processo Civil, me privou de 27 dias de mandato, favorecendo ao suplente que ainda quer por que quer tomar o meu lugar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Preocupo-me por ele e por sua geração, pelos jovens que precisam ter a máxima certeza da seriedade das instituições. E, dentre elas o Poder Judiciário, a última cidadela num regime constitucional. A Justiça não pode sucumbir. Se  a minam  ou se ela se golpeia, leva de roldão todo o estado de direito.

A Lei e os juízes


E quando falo nessa instituição milenar, não me refiro apenas ao Supremo Tribunal Federal, com sua última palavra e sob o foco das câmeras a cada conflito legal de grande envergadura. Falo desde a primeira instância onde brilharam nomes emblemáticos, como Salete Macalós e Denise Frossard.
Não faz muito, dediquei-me a idas e vindas ao STF. Era a reta final do périplo da minha lei que libertou escravos das “diárias” na praça de táxis do Rio de Janeiro. Que, a bem da verdade, foi decidida por 10 a 1 contra o voto do relator, Carlos Veloso.
  Ao ver aqueles debates onde o contraditório estava no próprio contexto da Carta Magna, formei a convicção de que a Lei é presa do julgador, até por conta dessa ferramenta que chamam de hermenêutica.  Porque tantas são as leis, como já no Século XVIII lamentava Montesquieu: “as leis inúteis debilitam as necessárias”. E mais:  “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda parte”.
Nestes dias, todas as atenções da opinião públicas estão focadas no STF, onde dez magistrados decidem se aceitam denúncias contra 40 figurões da República, acusados das mais variadas formas de corrupção e desvio de conduta. Por três dias, brilhantes advogados exerceram seus talentos com o único objetivo – livrar seus clientes de toda e qualquer acusação.
Temos, no entanto, um confronto de rito por conta dessa exceção que se estabelece em nosso país. Por envolver ex-ministros e parlamentares, o Supremo se converte em primeira e única instância - uma faca de dois gumes, uma responsabilidade redobrada, uma afronta ao princípio pétreo de que todos são iguais perante a Lei.

Justiça política


Mais do que qualquer outra instância, o STF é uma corte política, queira ou não o ministro Marco Aurélio. Políticas são, infelizmente, as indicações para suas cadeiras, independente de estarem entre eles alguns sábios; independente dos critérios “técnicos” e dos valores morais que cada um se atribui pelo peso de suas decisões.
Nesse caso, não há nada mais deprimente do que ler que a indicação do próximo ministro vem passando por negociações com o PMDB – Meu Deus, a quem confiar nossa sorte? Já imaginou o deputado  Eduardo Cunha negociando quem será catapultado para a 11ª cadeira da mais alta corte do  Brasil?
Esse ambiente preponderantemente político no topo do Poder Judiciário acaba por contaminar todo o seu organismo. O exaltado princípio do concurso público só existe para a primeira instância em função de concepções doutrinárias nunca questionadas. Na segunda instância, valem as listas tríplices, inclusive para quem nunca foi juiz. Na terceira, é o chefe do Poder Executivo quem escolhe.
No entanto, permita-se o parêntese, arma-se um tremendo escarcéu diante de um projeto que pretende efetivar servidores há anos no batente, que só querem o reconhecimento de uma situação de fato, tal como aconteceu com muitos de seus colegas. E querem exatamente em nome de sua condição real, servidores do Estado e não empregados de empresas particulares.
Ser barnabé, só por concurso e olhe lá. Ser ministro do Supremo, com cargo vitalício até aos 70 anos, vale uma boa indicação ou uma discreta negociação, que acaba sendo paga pelos contribuintes, como nesse jogo desesperado pela prorrogação da CPMF.
Isso tudo só serve para manter os cidadãos sob o império da insegurança jurídica, de onde a própria palidez do regime dito democrático. Como são manipulados, a estes não ocorre discutir a natureza dos poderes e as idiossincrasias dos seus titulares, reservando-lhes tão somente sofrer e torcer diante de cada situação apresentada. No direito, como no cotidiano, vive-se o hoje tal como está posto. O mais que se olha é para os personagens do proscênio. E deles se espera o que nem sempre está no catálogo.
A mim, importa saber o que o decidirão os dez ministros do STF sobre os 40 acusados no chamado caso do “mensalão”. Mas preocupa muito mais preservar a fé na Justiça, onde espero que meu filho, ainda envolto no mais belo dos sonhos, possa oferecer o melhor de seu caráter, de sua vocação inquieta e seu sentimento generoso.
Desejo, sobretudo, que os jovens como ele se entreguem às refregas do direito como uma sagrada missão, segundo os   ensinamentos de Sócrates que só queria levar seus interlocutores a perceber que o que sabiam do mundo e de si mesmos era muito pouco e que a condição de sábio  talvez só coubesse para os que sabiam que nada sabiam.

SÓCRATES, O

FILÓSOFO QUE INSPIROU OS JOVENS



Em função de suas idéias inovadoras para a sociedade, Sócrates atraiu a atenção de muitos jovens atenienses. Suas qualidades de orador e sua inteligência, também colaboraram para o aumento de sua popularidade. Temendo algum tipo de mudança, a elite mais conservadora de Atenas começa a encarar Sócrates como um inimigo público e um agitador em potencial. Foi preso, acusado de pretender subverter a ordem ocial, corromper a juventude e provocar mudanças na religião grega. Em sua cela, foi condenado a suicidar-se tomando um veneno chamado cicuta, em 399 C

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

PORQUE GETÚLIO E BRIZOLA AINDA VIVEM!



“Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência”.

Getúlio Vargas, carta-testamento, 24 de agosto de 1954.


Estamos chegando ao final deste agosto e cruzando as últimas semanas do inverno. Aqui, do sopé da serra dos Três Rios, junto ao Parque Nacional da Tijuca, é possível contemplar uma natureza bucólica, que tenta resistir aos predadores à cata de qualquer refúgio onde erguer sua moradia. Ainda há verde no horizonte e os micos assanhados fazem da fiação seus trapézios. Eles andam em grupos, como se essa fosse sua alegria de viver.
Os pássaros que aqui gorjeiam transitam pelos jardins e dão-se ao prazer de bicarem em nossos jardins. Lembro a sabedoria de Friedrich Wilhelm Nietzsche, quando observa: “Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno”.

Há 53 anos



É dia de lembranças. Há exatos 53 anos, o Brasil vivia sua grande comoção social: Getúlio Dornelles Vargas, o mais importante líder brasileiro do Século XX, disparava contra o próprio coração, legando ao país com o seu gesto extremo a mais pungente das denúncias: sua morte foi o primeiro capítulo de uma novela que ainda não acabou.
Os poderosos grupos econômicos não mandam flores. Nem no inverno, nem na primavera que se descortina à distância. Querem sugar nossas riquezas e explorar nosso povo, numa guerra silenciosa que travam, segundo as práticas mais sujas de que se tem notícia em todo o planeta.
Ao contemplar o horizonte na direção da serra que atravesso todos os dias, dou-me à busca das respostas que seriam simples se a eletrônica máquina selvagem não monitorasse nossos hábitos e determinasse nossas decisões.
Curioso: quando Getúlio morreu, aos 72 anos, era o centenário de nascimento de Oscar Wilde, um sábio inquieto, que a meningite matou às 9h50m do dia 30 de novembro de 1900, ano em que a humanidade perdeu também Friedrich Wilhelm Nietzsche.
De Oscar Wilde, que nos deixou uma obra profunda, recolho um ensinamento: “um sonhador é aquele que só ao luar descobre o seu caminho e que, como punição, apercebe a aurora antes dos outros”.
Getúlio Vargas foi o melhor espelho de uma época rica em que ainda havia espaços para o cultivo de idéias e a construção de pensamentos. Ele percorria seu projeto sob a inspiração do sábio, para quem caminhamos com as duas pernas – a do sonho e a da realidade, uma alimentando e sustentando a outra.
Pouco se sabe e pouco se discute a respeito do Estado nacional e do regime de garantias sociais que ele nos deixou como fundamento essencial de uma sociedade justa, próspera e independente.
Com sua morte, tentaram sepultar o nosso destino de nação senhora de suas riquezas e generosa com seus filhos. Ali, aliás, naquele agosto trágico, começou a grande ofensiva de recolonização de nosso país.

1964 X 1954 e 1961



Em 1955, se não fosse pela espada de Henrique Teixeira Lott, um general de verdade, teriam abortado a vontade do povo, expressa nas urnas, com a eleição de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Ainda era primavera, naquele 11 de novembro, quando o então ministro da Guerra, á frente da maioria legalista das nossas Forças Armadas, pôs para correr os que tentaram se encastelar no Catete e rasgar a Constituição.
Em 1961, um novo capítulo: a mal explicada renúncia de Jânio Quadros, também numa manhã fria de inverno. Para ser mais preciso, num 25 de agosto, dia do soldado.
Ali, emergiu outra lendária figura de nossa história: Leonel de Moura Brizola. Mesmo sem saber com quem podia contar a não ser com o povo que o fizera governador do Rio Grande do Sul aos 36 anos de idade, proclamou um rotundo “não passarão” e impediu que uma junta militar usurpasse o poder, já no Planalto.
Esse ato de bravura, que não se reconhece ao longo da história pátria na biografia de nenhum outro homem público, imputaria sobre o resto de sua vida o ódio mais torpe dos que foram frustrados em sua tentativa insidiosa, a serviço dos trustes, que passaram a financiar conspirações desde os tempos de Getúlio.
Foi então que veio o primeiro de abril de 1964, com todo o infortúnio que nos custou vinte anos de sofrimentos, traições, submissão à grande potência do Norte, violações festejadas dos direitos humanos, cumplicidade e covardia.
1964 foi a revanche ignominiosa que consagrou o arbítrio como forma de sustentação dos piores interesses e dos hábitos mais perversos, em contraste com a índole do nosso povo. Foi o segundo enterro de Getúlio e de seus sonhos nacionalistas.
Brizola foi escalado para o escárnio monstruoso. Mesmo depois que o regime das bestas feras se exauriu, ele continuou condenado, como se tivesse reencarnado com maior vigor e mais tenacidade o melhor de Getúlio Vargas. Qualquer um poderia chegar à Presidência de República, qualquer, viesse de onde viesse: Brizola, não.
Eles sabiam que Brizola seria o resgate mais cristalino do projeto nacional, o guardião mais determinado das conquistas trabalhistas, o verdadeiro libertador, com sua intuitiva percepção da aurora de que falava Oscar Wilde.
Não há, assim, como lembrar a morte do presidente Getúlio Vargas, sem falar do seu mais legítimo continuador. E não há como recordar o mundo que o grande estadista nos legou, apesar da orquestração reacionária, sem ligá-lo, por laços de sangue e de sonhos ao baluarte com quem convivemos até 2004.
Aqui, cabe recorrer de novo a Nietzsche: “as convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”. Resta saber o que será do amanhã, já que o nosso hoje não se vê a um palmo do nariz.
Faz um pouco de frio ainda e ainda há sonhos nos semblantes de muitos patriotas. Getúlio Vargas hoje está mais vivo do que nunca. Como Brizola. E como todos os que doaram suas vidas à causa de um Brasil realmente livre, justo e próspero.
coluna@pedroporfirio.com

domingo, 19 de agosto de 2007

A ANISTIA COMO SELO DO REGIME DE DIREITO



“Enquanto não houver luz sobre todos os fatos históricos brasileiros, não se completa a construção da democracia”
Carta de São Paulo do MPF/SP
Por mais que já tenha lido a respeito, por mais que tenha ouvido falar, você não tem a menor idéia do que foi o calvário dos perseguidos políticos nos anos tormentosos da ditadura. Falo não só por mim, que fui torturado 16 dias seguidos, mantido preso por um ano e meio e marginalizado do mercado de trabalho. Falo não só por Hélio Fernandes, que foi preso, confinado e sistematicamente perseguido. Falo não apenas por esta TRIBUNA DA IMPRENSA, que foi censurada, proibida, esmagada economicamente e atacada a bombas por terroristas que tentaram silenciá-la com a destruição de suas máquinas.
Falo pelos milhares de brasileiros que sofreram as mais diversas e mais perversas perseguições, que lhes acarretaram a morte brutal, o “desaparecimento”, a forja de “suicídios”, o banimento, o exílio, o desemprego forçado, o isolamento, a vida na clandestinidade, a destruição de suas carreiras e de seus sonhos, a fome, a miséria, as crises familiares e mais um rosário de humilhações.
Muitos desses perseguidos chegaram a viver como se mortos fossem e passaram por constrangimentos inacreditáveis: pilotos da Força Aérea, além de expulsos da farda, foram impedidos de trabalhar em qualquer parte do mundo, porque tiveram seus brevês cassados; outros tantos, em sua maioria jovens idealistas, foram banidos do território nacional, enquanto sofriam pesadas condenações na Justiça Militar.
Naquele ambiente de arbitrariedade e crueldade, muitos foram arrancados de suas casas sem saber por quê. Outros foram vítimas de vinditas pessoais, de denúncias levianas, de excessos de quem queria apoderar-se do que tinham, inclusive de suas mulheres e filhas.
Reencontro em Brasília
Foram muitos desses brasileiros e brasileiras que encontrei essa semana em Brasília, no I Seminário de Anistiados Políticos, promovido em boa hora pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, com a participação da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério da Justiça, através da Comissão de Anistia.
Você não pode avaliar a emoção que senti ao ver o brilho de esperança nos olhos de Tânia Fayal, banida do país aos 20 anos, e ao reencontrar Pedro Albuquerque, que vi de calças curtas no Liceu do Ceará às voltas com perguntas pungentes sobre o porque do sofrimento de nossos conterrâneos.
Posso dizer que nos dias 15 e 16 de agosto de 2007 eu me encontrei com um pedaço da história do Brasil, ao confundir-me com outros tantos patriotas que sacrificaram suas vidas ou pagaram o preço mais alto por conta de um regime de força, que precisava prender e arrebentar, perseguir e acuar, difamar e excluir para garantir a tarefa de manter o nosso Brasil sob controle dos interesses econômicos da grande potência do norte, naqueles idos trágicos de uma guerra fria, suja e calculada.
É como se aqueles homens e mulheres de semblantes graves e cabelos brancos tivessem saído naqueles dias do grande calabouço em que foram soterrados na expectativa da mais sagrada justiça a que se obriga o regime de direito, reconquistado principalmente em cima do sacrifício que passaram. E essa justiça tem um nome: anistia geral, ampla e irrestrita, com a obrigatória reparação de todos os danos que o Estado ditatorial lhes infringiu covardemente, valendo-se das armas, do terror, da impunidade e do silêncio imposto a todos a ferro e a fogo.
Nessa inevitável resposta institucional, selo indispensável à legitimação do regime de garantias constitucionais, não se pode falar em travas ideológicas, preferências partidárias, ranços de nostalgias ou retaliações revanchistas, como muito bem observou o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Isso demonstrou saber também, como demonstrou em sua cristalina exposição, o jovem jurista Paulo Abraão Pires Junior, presidente recém-empossado na Comissão de Anistia, cuja maior preocupação é agilizar os procedimentos para reduzir de 15 para 3 anos o ritual de avaliação dos mais de 60 mil pleitos ali protocolados.
Em nome da verdade
A realização desse primeiro seminário, com a participação dos próprios atores daquele drama de que a nossa sociedade hoje se envergonha, acontece quase vinte anos depois da primeira anistia, que abriu os cárceres e reabriu as portas do Brasil aos seus filhos banidos e exilados.
Mas há de ser o ponto de partida de um novo formatado de discussão, com a abertura sem constrangimento às contribuições e aos depoimentos, como fez de maneira prática o jurista Paulo Abraão: ao ouvir o abrangente documento aprovado pelos anistiados e anistiandos presentes, agendou para o dia seguinte uma reunião com suas representações, a fim de que toda a Comissão de Anistia recolhesse o diagnóstico formulado por quem vive o problema na própria carne.`
O documento aprovado é, por sinal, uma obra prima da análise histórica e incursiona com maestria sobre os vários aspectos postos no contexto da anistia e sua repercussão institucional.
No entanto, como toda peça legal, o arcabouço de leis a respeito da anistia devida deve ser tratado com o máximo de lucidez, transparência e senso de justiça. Ela é um reparo de natureza política e destinada às vítimas do arbítrio. Qualquer tentativa de forçar o benefício em face de alguma brecha ou algum subterfúgio, como aconteceu na segunda metade da década de 90 no caso dos jornalistas do Rio de Janeiro, só servirá como insumo para os que se rasgam de ódio contra o reconhecimento.
Ficou claro para mim, no seminário de Brasília, que a Comissão de Anistia tem bastante clareza a respeito. O Estado deve muito a muitos que foram aniquilados e sobreviveram a duras penas, servindo de bodes expiatórios e de “exemplos” com os quais o poder de ferro amedrontava toda a sociedade e levava muitos ao silêncio covarde.
Há situações graves como de centenas de jovens que ficaram sem futuro e, como não têm como comprovar vínculos empregatícios, podem não ser alcançados pela reparação. É um caso sobre o qual se impõe uma interpretação segundo a doutrina constitucional.
Mas fora do campo demarcado dos que foram realmente perseguidos e prejudicados nos termos do Artigo 8º das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 não cabe forjar compensações indevidas.
Impõe-se assim o mais alto espírito de fidelidade jurídica de parte a parte.
Nas Pegadas de Rondon
Já está indo para as livrarias uma das obras mais sérias sobre nossas comunidades indígenas. Escrito por dois sertanistas que se embrenharam na selva entre 1948 e 1970, quando esse era um trabalho absolutamente heróico, “Nas Pegadas de Rondon” nos traz de volta Hélio e Ivete Bucker. Os realmente interessados na questão indígena não podem deixar de ler esses depoimentos editados pela Entrelinhas.
Bloco Partidário
Será lançado hoje, às três horas da tarde, no Hotel Glória, uma frente partidária, autodenominada “Bloco de Esquerda”, tal como ele já existe na Câmara Federal. É formado pelo PDT, PC do B, PSB, P MN, PHS e PRB (partido do senador Crivella). Para ser mais correto, esse bloco, que é importante no contexto político, poderia ser chamado de “Alternativo”. Porque de esquerda, com alguns partidos sem esse perfil, ele não pode ser denominado, a menos que já comece abusando da semântica.
coluna@pedroporfirio.com

domingo, 12 de agosto de 2007

POR UM MINISTÉRIO DA SAÚDE E NÃO DAS DOENÇAS



"Chegou a hora de tirar das mãos do médico a seringa, como se tirou a pena das dos escritores durante a Reforma. A maioria das doenças que temos hoje em dia podem ser diagnosticas e tratadas por pessoas comuns."
Ivan Illich (pensador austríaco, autor de “Némesis Médica” e “Sociedade sem Escolas”, 1926- 2002)

Convenhamos: já estava na hora do Ministério da Saúde deixar de ser Ministério das Doenças. Nesse país em que não se escreve o que se fala, ou se escreve por linhas tortas, um choque frontal na questão da saúde pública era o mínimo que se impunha diante da calamidade numa área em que tudo está com sinais trocados, acarretando uma septicemia social.
Digo já era hora porque estou convencido de que, finalmente, por cima de pau e pedra, o Ministério da Saúde está em mãos de quem entende, até pelo longo percurso iniciado na maior escola do ramo – a Fundação Oswaldo Cruz. E o faço de alma lavada.
Como aprendi a conhecer os homens públicos segundo os ensinamentos de Sartre, isto é, pelos sinais emanados de uma única atitude, propus à Câmara Municipal do Rio de Janeiro a outorga da Medalha Pedro Ernesto ao médico José Gomes Temporão, há poucos meses à frente de um Ministério que já se prestou a tudo, até a fazer alguma coisa na defesa da saúde dos cidadãos.
A solenidade de entrega, na sexta-feira, dia 10, foi muito mais do que uma homenagem. O próprio ministro fez questão de aproveitar para expor suas concepções sobre a saúde no Brasil. E o fez de forma didática, até porque, como assinalou, passou quatro meses ouvindo notícias sobre sua indicação. “Isso me levou a aprofundar o diagnóstico de tal forma que, se não fosse nomeado ministro, teria matéria para um livro”.
Doença por inércia
Da minha parte, expus a perplexidade de quem não aceita que um problema tão sério tenha sido tratado até agora sob a égide da incompetência, da ausência de primados conceituais e da prevalência de interesses, privados e corporativos.
A indústria da doença, de caráter inercial, não tem mais como sobreviver. Não há dinheiro que chegue para enfrentá-la e não há governo que consiga responder a uma demanda viciada, que desfigurou o pronto socorro e a própria função do sistema público de saúde.
Se não romper com o modelo atual, o país continuará alimentando um rosário de contradições: os profissionais têm remuneração miserável, o serviço que prestam é precário (principalmente com os plantões semanais de 24 horas, que ninguém agüenta) e o dinheiro público acaba servindo para alimentar a corrupção, como a máfia das ambulâncias e outros desmazelos aceitos como fatos consumados.
Hoje, toda a briga que se trava é para saber como botar a mão nas verbas obrigatórias, definidas constitucionalmente. É verdade que o governo federal gasta proporcionalmente menos com saúde do que outros países, como mostra a OMS: a Argentina destinou à saúde em seu orçamento federal 14,7% de 2003, contra 11,9% na Bolívia. O índice brasileiro é pior até que o do Haiti, que gastou 23%, e o de Cuba, 11,2%. Abaixo do Brasil estavam apenas naquele ano o Equador (8,2%), o Uruguai (6,3%) e a Venezuela (6,4%).
No entanto, o aumento na rubrica não trouxe nenhuma melhoria visível. O orçamento federal de R$ 40 bilhões representava, em 2006, 1,75% do PIB, contra 1,60% de 2003. No mesmo período, porém, em relação ao PIB, os gastos dos estados com saúde saíram de 0,54% para alcançar 0,80%. Nos municípios, houve uma evolução de 0,63% para 0,94%.
É claro que nunca é demais brigar por um orçamento decente para essa área, embora nossa trincheira não tenha nada com a da chamada “bancada da saúde”, formada em sua maioria por defensores de interesses privados.
Aliás, ainda segundo a OMS, no Brasil, 54,7% dos gastos em saúde são privados. O governo responde pelos 45,3% restantes. O inglês e o sueco, por exemplo, precisam tirar do bolso só 14% - os outros 86% são pagos pelo governo. No País, 35% dos custos privados são pagos por meio de planos de saúde e 64% são cobertos pelo cidadão diretamente.
Um novo olhar
Essa briga será inútil se os governos não considerarem que sua função essencial é proteger o cidadão das doenças e, diante de sua incidência, enfrentá-las no seu módulo correspondente. É preciso, como enfatizou o ministro José Gomes Temporão, reformular a cultura que se institucionalizou, numa espécie de roda viva envolvendo profissionais de saúde e os cidadãos.
Rever a cultura atual é considerar parâmetros da chamada reforma sanitária, que parte do princípio de que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Mas essa reforma, que já é um avanço conceitual, precisa ser aprofundada na compreensão de que o dever do poder público é, como já disse, adotar um conjunto de medidas que reduzam a dependência do atendimento curativo.
O ministro Temporão demonstrou ter clareza disso quando teve a coragem de encarar positivamente os direitos reprodutivos, que fazem parte do DIREITO NOVO.
Mostrou também uma visão desassombrada quando teve peito de pôr na ordem do dia o consumo do álcool, assentado não apenas numa tradição, mas, principalmente, numa propaganda inescrupulosa, graças à qual um evento juvenil, como os jogos pan-americanos, teve entre seus patrocinadores uma cervejaria.
Em sua fala na Câmara, ele lembrou que 35 mil pessoas morrem anualmente em acidentes de trânsito no Brasil: dessas, pelo menos a metade tem a ver com o consumo de bebidas.
Temporão também está investindo contra outro poderoso cartel, o dos remédios, hoje dependentes de importação. Sua primeira vitória foi na compra de medicamentos para AIDS. Pelo menos um laboratório já foi enquadrado, o Merck, que produz o Efavirenz, para o qual o governo pagaria este ano R$ 49 milhões, beneficiando 75 mil portadores de HIV. Com a quebra da patente, a situação mudou e não era para menos: O Brasil vinha pagando 1,59 dólar por comprimido e queria uma redução para 0,65 dólar, mesmo preço praticado pela Merck na Tailândia.
É a partir do confronto com os verdadeiros sanguessugas da saúde que o governo poderá redefinir suas políticas e vencer os desafios da manipulação das doenças. A nós outros, repito, cabe dar o apoio indispensável a alguém que pode nos dias de hoje ter para o país o mesmo papel transformador que o médico Pedro Ernesto teve para o antigo Distrito Federal.
coluna@pedroporfirio.com

domingo, 5 de agosto de 2007

APESAR DE TUDO, “FORA LULA” HOJE, NEM PENSAR

"A democracia não é o melhor dos regimes. É o menos mau. Experimentamos um pouco de todos os regimes e agora podemos compreender isso." Albert Camus, escritor franco-argelino, novembro de 1948 Menos. Com a autoridade de quem primeiro viu e primeiro denunciou o “cavalo de pau” do governo petista, declaro para todos os fins que esse discurso de “Fora Lula” é hoje obra da irresponsabilidade, da demência e do rancor de quem não está nem aí para a sorte do povo brasileiro. Mais leviano parece esse grito quando se procura atribuí-lo ao choque emocional que nos atingiu a todos com a tragédia do avião da TAM. Infelizmente, alguns eternos golpistas querem se aproveitar dos caminhos ínvios percorridos pelo presidente para expressar os piores sentimentos, que vão do vil preconceito contra a ascensão de um homem do povo até a obsessão de poder, que perseguem a qualquer preço. Nessa catilinária de tintura sensacionalista, que só serve para enfraquecer as críticas consistentes ao governo, esses reacionários demonstram o quão de obsoletos e decrépitos são ao tentarem reacender velhas paranóias, como a arenga do anticomunismo, bordão fétido, que serviu para que usurpadores civis e militares prestassem serviço aos patrões norte-americanos, naquela época tenebrosa em que a Nostálgicos da ditadura Esses incorrigíveis nostálgicos dos porões da ditadura deveriam ficar quietinhos, aproveitando-se da generosidade da gente brasileira. Aqui, nenhum torturador assassino, nenhum preposto dos trustes foi a julgamento, como aconteceu na Argentina, onde os gendarmes que traíram as fardas foram condenados à prisão perpétua e até hoje respondem a processos e ao escárnio público. Quem tem autoridade para criticar os desvios e o chocante passo atrás de Lula não é a súcia do arbítrio que caiu de podre. Nem os celerados de uma época de terror, muitos dos quais roubaram estatais, receberam propinas dos trustes e assassinaram oposicionistas, num macabro recital que nos subtraiu vinte preciosos anos de vida e liberdade. Também não têm autoridade para falar em “fora Lula” os mesmos cúmplices que ainda ontem participavam da farra das doações de nossas empresas nacionais, sob a batuta do professor que também abjurou de suas idéias pretéritas e mandou rasgar seus livros. Lula está certo? Não. Lula está redondamente errado. Seu governo não tem nada com os discursos de todas as suas campanhas, nem com as mobilizações que levaram ao crescimento do seu partido que se lambuza no mel farto dos podres poderes. Continuísmo suicida Lula está errado porque amarelou. Porque deu continuidade à política econômica de sujeição dos interesses nacionais ao sofisticado sistema de dominação multinacional, que nos acorrenta a um “mercado” apátrida, para o qual Deus é o lucro fácil. Lula está errado porque manteve incólume a proposta do Estado mínimo, sucateando os serviços públicos, massacrando seus servidores, rendendo-se aos apetites dos grupos privados que vão se apoderando dos destinos dos aposentados e sobretudo, porque seu governo satisfez em dobro aos banqueiros insaciáveis, aos quais entregou a gerência do Banco Central, através de Henrique Meireles. De tal monta é esse erro que hoje das quatro empresas mais lucrativas do país, três são bancos que vivem da especulação financeira. Lula errou porque não teve peito para questionar as privatizações-doações de FHC, como a da Vale do Rio Doce, entregue a grupos privados por 3,5 bilhões de dólares, um terço do lucro líquido anual dessa grande empresa que já deveria ter voltado ao estratégico controle do Estado brasileiro. Lula erra porque mantém os mesmos repugnantes métodos de relacionamento político, referenciados pelo “padrão Renan Calheiros”, nesse “dá lá, toma cá” que negocia a administração, submetendo-a a indicações políticas despropositadas e franqueando-a à mediocridade, incompetência e à mão grande. Lula erra ao transformar os programas de assistência social compensatórios no carro-chefe de sua política para os pobres, cristalizando uma dependência e um hábito perigosos para as próprias famílias “beneficiadas”, ao invés de investir com seriedade na geração de empregos e renda. Lula erra quando terceiriza as obrigações do governo federal, alimentando ONGs sanguessugas, que cresceram de 25 mil para 300 mil desde 2002 e formam hoje um poder paralelo, que desvirtua, ilude, corrompe e paralisa os grupos sociais. Lula erra na sua política para a Amazônia, de vistas grossas para a sua desnacionalização, para os cavalos de tróia, as grilagens, as demarcações encomendadas de terras indígenas e a legitimação de áreas de grandes latifúndios no meio da mata. Lula erra na questão da terra, perdendo uma rara oportunidade de promover uma verdadeira reforma agrária, que permita a ocupação produtiva e eqüitativa do campo e assegure dignidade e condições mínimas aos lavradores, tanto através de cooperativas como do apoio a pequenas propriedades. Lula erra em sua política de transportes e infra-estrutura, que só tem favorecido a empreiteiras ávidas de lucro fácil, mantendo os mesmos desvios estratégicos em relação às ferrovias e à navegação de cabotagem e contribuindo para a formação de um ameaçador duopólio de cartas marcadas na aviação, junto com gestões traquinas da malha aérea e dos aeroportos. Mas nenhum desses erros, repetecos hipertrofiados de governos passados, justifica a ruptura com a linha sagrada da constitucionalidade e a observância dos marcos do direito à crítica e à denúncia, embora o poder econômico e intermediários que controlam a publicidade estatal operem por todos os meios a asfixia da imprensa independente. E apesar desses erros todos, que poderão sujeitar o governo e o PT ao mesmo vexame que acometeu FHC no seu crepúsculo, a gestão do sr. Luiz Inácio vai acabar servindo para uma nova tomada de posição dos formadores de opinião, abrindo caminho ao resgate de ações críticas e criteriosas dos cidadãos, sob a égide da soberania nacional, da justiça social, da liberdade irrenunciável e do desenvolvimento econômico emancipador.