O carnaval de hoje é das estrelas que mostram suas virtudes na pista. No passado, a alegria era geral.
“Se o amor é fantasia, eu me encontro ultimamente em pleno carnaval”.
Vinícius de Moraes
“O povo toma pileques de ilusão com futebol e carnaval. São estas as suas duas fontes de sonho”.
Carlos Drummond de Andrade
"O carnaval é basicamente um movimento diluidor da rebeldia”.
Affonso Romano de Sant'Anna
Apesar da ampla e diversificada repercussão da coluna sobre os maus presságios que rondam o PDT como um espectro agourento, é de todo impossível escrever sobre qualquer coisa que abstraia o grande acontecimento nacional: desde ontem, os bravos cidadãos brasileiros estão às voltas com a semana momesca, de onde nada há a declarar que venha a desprezar os encantos dessa catarse sazonal compensatória de transcendia explícita.
Semana, sim, que vai de quinta a quinta, no mínimo. Porque já nesta sexta-feira será impossível encontrar uma viva alma envolta numa faina mais embaraçosa. Nessas horas, não há parâmetros sociais. A transmudação para um outro reino, fantasioso ou simplesmente relaxado, está no mais anêmico dos sangues pátrios.
É a trégua cega, que a todos seduz como uma mescla de todas as manifestações do corpo e da alma. Não há explicação lógica. Não há preocupação com crises ou quinquilharias semelhantes.
Pode ser que essa “libertação” temporária acometa outros povos do mundo, nesta ou em outras efemérides. Mas por estas terras tropicais e lânguidas, a ascensão do rei gorducho tem o condão da esbórnia ansiada como a panacéia de todos os sofrimentos pretéritos e futuros.
A esbórnia ansiada
É algo que qualquer filósofo, cientista político ou outro tipo de mago terá visíveis dificuldades para explicar. Porque o carnaval é um paradoxo existencial: quanto mais escapa ao populacho, quanto mais é privatizado como espetáculo para inglês ver, mais a massa subalterna se sente comprometida, numa sintomática assimilação de uma sociologia de conformismo extremado.
O carnaval de hoje não tem mais nada com o entrudo d’antão. Não oferece mais o palco iluminado para os folguedos espontâneos no desvario dos corpos movimentados em alegres cordões, nos blocos formados ao acaso, com o seu humor cortante.
Pode até ser que aqui e ali ainda haja sobreviventes da alegria descompromissada, que a tantos compositores inspirou na ficção dos pierrôs e colombinas. Mas esses podem estar desafiando a industrialização da festa, expondo-se ao ridículo e ao isolamento.
O que nesta cidade carioca se busca avidamente é uma oportunidade para estar no cenário central, seja entre os foliões que pagam para sair nas endeusadas escolas de samba, seja morrendo numa boa grana para ter direito a ver os desfiles de perto, ao vivo e a cores.
Nesse palco já por si seletivo ainda existe o carnaval exclusivo dos camarotes milionários, onde rola tudo, até, de vez em quando, um pouco de samba no pé. São os espaços comprados por grandes marcas de bebidas e outros produtos que caem bem para o consumidor nesse ambiente de exibicionismo incontido.
Como espetáculo transmitido para o mundo inteiro pelas cores da televisão, não há grandes diferenças entre este e os carnavais que passaram. No momento, além dos faturamentos por dentro e por fora, os donos das escolas passaram a vender patrocínios, em função dos quais montam seus enredos e dispõem suas alas e carros alegóricos.
É a exploração do mercado elevada ao extremo. Aquela que se diz a maior festa popular do mundo é uma grande fraude que, além de tudo, embranqueceu. Fraude como tantas outras que viraram entidade monitora dos nossos hábitos e costumes, como ferramenta indispensável em todos os ramos da manifestação social, política e econômica.
A saga dos fugitivos
Fora da catedral privativa dos sambas que repetem as mesmas melodias e abusam de lugares comuns e clichês em suas letras direcionadas, há a maratona dos fugitivos.
O Estado do Rio de Janeiro, como nenhum outro aglomerado do mundo, oferece exílios dourados aos que não quiserem ouvir o ronco das cuícas. Para o norte e para o sul há praias e balneários paradisíacos. Mas não é só isso. As serras próximas oferecem o cerne de uma natureza generosa e exuberante.
Vale a pena fugir e isso não é privilégio dos que buscam as ilhas de Angra dos Reis, as praias de Búzios ou a paisagem verdejante de Petrópolis e Friburgo. Apesar das estradas proibitivas, como a Rio-Santos que leva á costa verde e nos coloca de cara com a histórica Parati, há uma corrida febril em busca da festa do interior.
Nessa expedição, todos já sabem que terão de penar antes de chegar ao destino, tantos são os interessados em espreguiçar à distância, onde o mar é mais misterioso ou onde as centenárias árvores dão os tons calmantes de um ambiente distante das neuroses urbanas.
Não interessa a ninguém, nem aos que ficam para ver ou para se exibir, nem aos que se mandam pelos duvidosos caminhos engarrafados, qual o preço será pago por esses dias de folgança.
Vive-se uma trégua na guerra de uma realidade incerta e isso é tudo. É de tal forma a ascendência desses dias que não sei quantos ainda, como este obcecado que lhes escreve, vão se dar ao trabalho de abrir o computador para ler estas mal traçadas linhas.
Ou para procurar saber a quantas anda a vida neste mundo de tramas pérfidas e esmagadoras.
Um comentário:
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