sábado, 7 de fevereiro de 2015

As águas de fevereiro

Já não se pode levar a sério nem ameaça de ciclone: que o diga o prefeito que se armou para enfrentá-lo


Em clima de declaração de guerra, o prefeito formou a sua trupe de rapazolas sarados às 6 da manhã de uma quinta-feira de sol majestoso e fez um alerta marcial aos quatro ventos: - Estamos em posição de defesa ante a iminência de grandes temporais influenciados por um ciclone subtropical.  Quem está em solo firme, só saia de casa se não puder ficar. Quem mora em área de risco, trate de cair fora antes que o barraco lhe caia na cabeça.

Foi um Deus nos acuda, literalmente, um Deus nos acuda com toda a fé que remove montanhas. Fevereiro de carnaval ia oferecer um ensaio aperitivo pra muito afoito tirar seu cavalinho da chuva. Era o espetáculo do ciclone à brasileira.

Durante todo o 5 de fevereiro deste 2015 não se falou de outra coisa na  terra de São Sebastião: a última grande enxurrada aconteceu em 13 de fevereiro de 1996, com 22 mortos só no primeiro balanço. Mês surpreendente, esse aí.

Mas desta vez a chuva incorporava uma causa justa, a dos sem água do amanhã. Daí, o populacho curioso se comunicava entre si para saber onde cairiam as primeiras gotas do líquido mais precioso do que nunca. Viesse enxurrada, não importava, o prioritário era afastar o fantasma do Cantareira, aquele reservatório que vem tirando a paulicéia desvairada do sério.

Foi por isso que o prefeito deu espetaculosas asas às nuvens iracundas que se espalhavam onde o vento fazia a curva.

- Chove chuva, chove sem parar – oravam nos templos e batiam tambores nos terreiros ensandecidos. Até sua eminência o cardeal ajoelhou-se ante o Cristo Redentor. E quem ajoelha tem de rezar.

Devidamente paramentados, de galochas e salva-vidas, o prefeito e sua trupe de rapazolas sarados atravessaram as ruas mais sujeitas a enchentes ainda no alvorecer. E, como não são de ferro, foram acampar no bem refrigerado centro de operações da Prefeitura, onde se serviam sucos afrodisíacos sob os flashes de todas as câmeras e onde aquele aloprado exibe em todas as reportagens um gravador em que destaca o nome da Super Rádio Tupi num merchandising invejável.

Havia um quê de cacique Cobra Coral no semblante castelão do jovem nascido em 1969, um mês antes do perverso AI-5. Era essa coincidência natalícia que o movia ao protagonizar mais uma pegadinha que levou a multidão perplexa a um estado de tensão compensatório: o brabo era mesmo o medo da água sumir pelo ralo e deixar meio mundo na saia justa de um odor desagradável.

Fazia tanto tempo de sol a pino que todo mundo sonhava com um refresco qualquer, fosse uma neblina suave ou insólitas chuvas torrenciais com relâmpagos e trovoadas. O mar não estava pra peixe ainda mais com a desafinada sinfonia do volume morto de rios tanto antes navegados.

O prefeito e sua trupe de rapazolas sarados contavam os minutos nos dedos numa espera prenhe de emoções circenses. Faziam rodízio no olhar o horizonte perdido, mas nem um sinal da gota serena, enquanto o sol foi cumprindo sua rotina sem notícias do misterioso temporal que mandou todo mundo mais cedo pra casa. Pra não dizer que estava intransigente, o astro-rei deixou cair algumas gotas de orvalho em movimentos esparsos e efêmeros.

Os rapazolas sarados davam nó em pingos d'água para contornar o mico hídrico. Mas os céus continuavam sovinas e indiferentes aos clamores da urbe cristã. Faltava água no céu, tanto como na terra. Ferrou.

O prefeito não se dava por satisfeito. Ao descortinar da noite espessa, porém,  teve que admitir a "barriga" e reverter o discurso: "graças a Deus não veio o temporal esperado" – tentou fazer do limão uma limonada.

A pegadinha teria de deixar sequelas. Quem vai acreditar no prefeito quando ele tentar outra vez espetacularizar o que seria apenas um shakespeariano sonho de uma noite de verão?

O triste em toda essa ópera bufa é saber que o buraco é mais embaixo e expõe a patética possibilidade de um racionamento de água e, por tabela, de energia elétrica?  

O GLOBO de 14 de fevereiro
de 1996 : um dia de caos
Quantas pessoas entre nós estão pensando num provável período de vacas magras, sem cacimbas e sem medidas inteligentes de melhor aproveitamento da água e do uso mais racional da energia fornecida, agora, mais do que nunca, a peso de ouro?

Em tempo: a novela não acabou. Quando a gente menos esperar, pode cair um tremendo toró – lembrai-vos que o de 1996 foi num dia 13, e o 13 de 2015 será numa sexta-feira. Já viu, né? Qualquer coisa pode acontecer neste país que em matéria de água as autoridades pertinentes preferem enxugar gelo.