domingo, 28 de setembro de 2008
Como se não estivéssemos à beira de uma festa cívica
A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes."
Bernard Shaw, escritor irlandês (1856 -1950)
Esse frio que faz na alvorada de um domingo primaveril sugere um estado de ânimo letárgico diante de um momento que deveria ser apoteótico para esse que dizem ser um regime democrático.
É como se a natureza sofresse a influência de uma civilização emasculada, sob o espectro de uma inércia de laboratório. É como se da estação das flores não brotassem mais as rosas, hoje tristonhas pelo pouco caso dos seres humanos, estes mergulhados no próprio tédio, na absoluta ausência da mais simples vontade do exercício crítico, como se todos estivessem acometidos de uma vexatória morte cerebral.
Estamos a menos de uma semana do dia em que as cidades conhecerão os titulares dos poderes locais – novos ou não – e não se pode dizer que a cidadania está ocupada na tarefa de estudar criteriosamente os valores que presidirão o seu o seu direito de escolha, prerrogativa tida e havida como a certeza de que desfrutamos da mais frutífera relação entre governantes e governados.
A forja da manipulação é quem dá as cartas, determinando o que cada um deverá fazer na hora da verdade nada verdadeira. Por todos os ardis de uma modernidade sem laços com o passado, nem compromissos com o futuro, o ato de votar no próximo dia 5 de outubro parece, para uma grande parcela da população, apenas uma obrigação, uma forma de evitar futuros aborrecimentos em face da legislação que torna obrigatório o comparecimento às urnas.
Mirem os aspirantes a timoneiros de nossas urbes e pouco de conteúdo se perceberá em seus discursos. Parece um castigo de Deus: esses pretensos próceres não são líderes, não têm rastros na história e se pintam como os preferidos, o são em função dos truques e de uma terrível ditadura instalada em nosso universo, aquela que foi inoculada em nosso próprio sangue.
Voto pelo voto
A sociedade brasileira está perdendo a oportunidade de fazer do voto um juízo de valores. Ante a indiferença pálida da cidadania, os canastrões assomem o proscênio e oferecem seus surrados balaios de vento, adereços de uma farsa que nos deixa em dúvida o que vem a ser mesmo um regime democrático.
Como se faz um prefeito no Brasil, hoje? Como alguém chega a uma Câmara Municipal? Será que não existem mais olhos para ver o cenário de uma primária conspiração, na qual o povo entra com sua descuidada chancela?
A Câmara Municipal de uma cidade é cada dia mais povoada por estranhas figuras, saídas do clientelismo, do uso da máquina pública, da intimidação e de um ambiente absolutamente acrítico.
Um vereador no Rio de Janeiro tem o vencimento líquido inferior a R$ 6.000,00. No entanto, dois terços deles mantêm onerosos “serviços sociais”, com ambulâncias, médicos, dentistas, fisioterapeutas, barbeiros e outros profissionais que se prestam a verdadeiros embustes, valendo-se do sucateamento dos órgãos públicos com suas arapucas caça-votos.
Um segmento crescente representa as milícias, poderes paralelos que substituem a polícia (de onde saem), cobram taxas por tudo dos moradores e comerciantes e aproveitam para faturar serviços ilegais, como a popular gatonet.
Nesse ambiente, também existem os oriundos dos currais religiosos, sejam os evangélicos ou os católicos carismáticos. Algumas igrejas chegam ao desplante de apresentarem seus pastores e bispos como candidatos escolhos por Deus.
O voto de opinião, que já teve grande peso em cidades como o Rio de Janeiro, rareia cada dia mais, com sua migração para galpão da indiferença. Nas últimas eleições, mais de 30% dos cariocas simplesmente deixaram de votar para vereador. Com isso, os que não precisam dos favores dos políticos inescrupulosos a estes servem a custo zero, na medida em que deixam de votar nos poucos com bons propósitos, raros, mas que ainda existem.
As eleições destes dias empanados pelas farmácias de manipulação política são tão precárias que dispensam comícios, debates e outros elementos que poderiam servir para apresentar os candidatos ao julgamento do eleitor.
Cartas marcadas
Os candidatos, sejam a prefeito ou a vereador, não têm acesso igualitário aos eleitores. Os partidos “maiores”, que legislaram em causa própria, têm mais tempos de televisão e rádio, com base em critérios absolutamente insustentáveis: aquele que tem a maior bancada federal tem mais tempo na tv.
Aplicam-se aí os mesmos valores que influem na pirâmide social, com uma distorção a mais: nem sempre o quadro nacional se reflete numa determinada cidade. Um partido que faz sua bancada de deputados nos currais dos estados mais atrasados têm mais tempo de televisão em cidades onde sequer existem.
O critério da distribuição de tempo no horário gratuito torna ostensivamente desigual a disputa. Quem tem mais deputados federais, tem mais horário na tv e no rádio. É, portanto, uma grande hipocrisia o discurso de que a repressão à propaganda de rua visa a garantir o acesso equânime de todos os candidatos ao eleitorado.
Essa distribuição desigual é tão absurda que um partido com fartura de tempo chega a apresentar o mesmo candidato duas vezes no seu espaço.
Mais grave ainda: as direções partidárias têm seus próprios “preferidos”, aos quais favorecem descaradamente. Alguns ganham essa preferência por sobrenome, por parentesco e por proximidade com os que escalam o time. Outros, por sua capacidade de “contribuir” financeiramente para os chefes de algumas legendas.
Não há equidade entre os partidos, como não há critérios decentes dentro dos partidos. De onde o horário gratuito acaba virando um rolo compressor em favor de uma meia dúzia de privilegiados.
Tudo isso acaba por tornar o acesso dos homens de bem, cada vez mais raros e mais desmotivados. Dentro dessa grande farsa ainda pode acontecer mais indignidades: pode acontecer de um suplente assumir no “tapetão”, graças ao poder discricionário de que dispõe hoje um desembargador, poder nada legítimo que deixa no chinelo os poderes dos generais no regime militar.
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