“o Senado é melhor do que o céu, porque nem é preciso morrer para estar nele”.
Darcy Ribeiro
Com a volta dos que não foram no Senado dessa República da carochinha, essa patética “consagração” da dupla Sarney-Renan, gostaria de voltar à discussão sobre a validade da manutenção dessa onerosa casa “legislativa”.
Mas antes de repisar antigas reflexões, consultei meus arquivos e vi que por mais de uma vez tentei pôr o dedo numa ferida exposta, com a qual os cidadãos convivem sem considerar que a duplicidade de casas no Congresso, específica no plano federal, compromete a própria utilidade do parlamento.
Por hoje, repito a coluna de 20 de junho de 2007, Veja o que escrevi no auge da farsa que poupou um senador evolvido numa robusta coleção de escândalos:
Para que serve o Senado Federal? Volto à pergunta a propósito dessa sucessão de trapalhadas que expõem a própria instituição legislativa perante uma sociedade cada vez mais perplexa, embora ainda muito passiva.
O questionamento é de ordem institucional. Há no mundo essencialmente dois modelos de Congresso: o bicameral, cuja maior expressão é o dos Estados Unidos, e o unicameral, adotado nos países, por coincidência, com melhor qualidade de vida e maior justiça social, como Suécia, Dinamarca e Finlândia.
Nos Estados Unidos, onde o sistema bicameral existe também em nível estadual, há um fato significativo, como citou Alaor Barbosa em seu estudo sobre o assunto: "quando as treze colônias começaram a se unir para lutar contra o despotismo da Inglaterra, primeiro organizaram, eletivamente, um Congresso Continental, composto de representantes de cada uma das colônias. Um Senado. Esse Senado, denominado Congresso, governou as treze colônias rebeladas, já em via de se converterem, cada qual delas, em Estado independente, durante a guerra de independência e mesmo durante os anos em que, após a independência durou a Confederação."
Casa simbólica
No país onde o Parlamento nasceu, a Inglaterra, o sistema é virtualmente unicameral, já que os poderes se concentram quase exclusivamente na Câmara dos Comuns, como observa estudo de Peterson de Paula Pereira, procurador da República no Amazonas, citado por Alaor Barbosa:.
"A Câmara dos Lordes subsistiu até os nossos dias, como reminiscência da velha cúria medieval. Mas sua função política e legislativa sofreu, nos últimos cem anos, sucessivas limitações, em favor de um contínuo aumento de prestígio e força da Câmara dos Comuns, que é o elemento "autenticamente" popular do governo britânico. Além da câmara alta não participar da escolha do ministério, que é da competência exclusiva da maioria da câmara baixa, a função dos lordes na atividade legislativa ficou reduzida a muito pouco, após as leis de reforma parlamentar de 1911 e 1948, que lhe retiram o direito de apreciar quaisquer projetos de natureza financeira (money bills) e também proibiram que quaisquer resoluções aprovadas na Câmara dos Comuns sofressem alterações ou emendas na Câmara dos Lordes”.
No Brasil, desde sua origem, na Constituição de 1824, o Senado nasceu sob o vício do mandato vitalício e indiferente ao voto popular, de resto seletivo naquele então. A República conservou essa “câmara alta” com acesso para os mais velhos e um mandato de 9 anos. Nesse período, além de ser um reduto para aposentadorias de luxo, o Senado abrigou também algumas eminências pardas do regime, como Pinheiro Machado, uma espécie de condottriere de sua época.
Na Constituição de 1934, a mais corajosa e de vida mais efêmera que tivemos, o Senado foi mantido, mas como um órgão de colaboração. Na ditadura do Estado Novo, o Congresso foi fechado e o Senado recriado como Conselho de Estado, integrado por ministros do Poder Executivo. depois da vitória oposicionista de 1974, Na ditadura militar, onde o Congresso foi cerceado abertamente, chegou a ganhar senadores “biônicos”, escolhidos de forma indireta.
Antro de privilégios
A partir da Constituição de 1946, o Senado se converteu numa casa legislativa de incríveis privilégios, abrigando principalmente políticos que haviam passado por governos de Estado ou recorriam ao “mandato majoritário” como forma de ter um mandato mais longo, sob pressão mínima e o pretexto acadêmico de uma representação qualitativa diferenciada.
O senador ganha mandato de oito anos e, quando há disputa de duas vagas, o eleitor pode dar dois votos, facilitando escolhas nada representativas. Além disso, a partir da Constituição de 1988, cristalizou-se a maior violência contra a vontade popular: um senador carrega dois suplentes que o eleitor desconhece, mas que podem virar legisladores sem um único voto.
Na prática, o Senado é uma outra Câmara Federal, com maiores distorções. Sob o manto da representação por Estados, um senador tanto pode representar 7 milhões de eleitores - os de São Paulo - como 200 mil, - os dos antigos territórios.
Embora senadores sérios como Pedro Simon entendam que a sua é uma “casa revisora”, a sua existência como segunda Câmara de Deputados com mandatos duplicados e representação duvidosa tornam mais graves os desvios de conduta de seus titulares. Enquanto um deputado começa a se preocupar com a reeleição no dia que toma posse, no Senado esse sentimento crítico é dispensável. Primeiro, pelos oito anos, depois pelo caráter majoritário de sua escolha: um político que não logrou ser reeleito vereador no Rio de Janeiro em 1996, ganhou o mandato de senador dois anos depois, em função da aliança estabelecida para a eleição de governador.
O que vem acontecendo hoje no Senado mostra que sua blindagem é muito maior, permitindo que o próprio presidente da Casa comande o seu julgamento diante de desvios de conduta que saltam à vista, graças ao que o seu Conselho de Ética foi para o beleleu e o senador Joaquim Roriz, flagrado ao telefone numa conversa imoral de divisão de propinas, se sinta à vontade para dar versões estapafúrdias sobre seu delito.
Por muito menos, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, teve que renunciar ao mandato e ainda foi punido pelos eleitores do seu Estado, que lhe negaram os votos para voltar àquela casa.
O currículo de um Senado caríssimo e praticamente inútil é tão comprometedor que, em toda a sua história, apenas um senador teve o mandato cassado – o empreiteiro Luiz Estevão, de primeiro e único mandato.
Nessa mesma casa, aconteceu um episódio insólito: o senador João Capiberibe, um homem de bem, perdeu o mandato no TSE por conta de uma denúncia da compra de dois votos, e uma pressão orquestrada do senador José Sarney, serviçal confesso da ditadura, que traiu quando apagaram a luz.
Se hoje o país está indignado com o espetáculo deprimente na nossa “Câmara Alta”, o que posso dizer é que nada disso me surpreende: a democracia representativa é mais vulnerável do que se supõe e, como disse Rousseau, a representação parlamentar está longe de ser verdadeiramente representativa. Exemplo escandaloso disso é esse Senado brasileiro, que transita entre o inútil e o indefensável.
mailto:coluna@pedroporfirio.com%20
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