domingo, 30 de novembro de 2008
Equador: a auditoria que Lula não teve peito de fazer e as trapalhadas da Odebrecht*
“Os três contratos principais (com a empreiteira Odebrecht) pelo valor de US$ 464,2 milhões terminaram em US$ 831 milhões, quer dizer 80% a mais do que o contratado. O governo do Brasil, através do Banco do Brasil, foi a entidade que financiou. Existe co-responsabilidade das entidades financeiras brasileiras BNDES e Banco do Brasil, ao tomar parte nessa cadeia de operações.”
Maria Lúcia Fatorelli Carneiro, ex-presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), do grupo técnico internacional que procedeu a auditoria da dívida externa do Equador.
“Ao invés de reconhecer o grave prejuízo causado ao povo do Equador, o governo Lula preferiu tomar partido pela Odebrecht, chantageando e retirando o embaixador brasileiro do Equador” – nota do PSOL.
Numa certa manhã de verão, em 1983, vi-me numa roda em que um empresário da construção civil, lépido e fagueiro, dissertava sobre as façanhas de sua poderosa empreiteira mundo afora.
Estava ali, na piscina do Copacabana Palace, por acaso. Tinha tido uma reunião com Carlos Imperial, que fora eleito vereador em 1982 e liderava a então majoritária bancada do PDT na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Às vésperas de assumir meu primeiro cargo público, o de coordenador das regiões administrativas da Zona Norte (que hoje chamam de subprefeitura) eu estava cheio de gás, crente que uma nova era se prenunciava, com o fim do tráfico de influências, das propinas e da corrupção que emblemavam os anos passados sob a batuta de Chagas Freitas.
Morando na Avenida Atlântica, Imperial me puxou para conhecer personagens que “sabiam das coisas” antes de qualquer mortal. Eles estavam ali, próximos à piscina, em alegres convescotes regados ao que o álcool pode oferece de mais sedutor.
Tão logo chegou àquele recanto, Imperial já estava de papo descontraído com alguns senhores da urbe, eu a seu lado, totalmente deslocado, o que me prostrou num silêncio observador.
Foi nesse cenário que ouvi calado o empreiteiro se gabando das regras de um jogo cujo trunfo maior era a propina:
- Na Nigéria (onde sua construtora fazia uma grande obra, o Aeroporto, se não me engano) a propina do presidente já consta formalmente na proposta apresentada à concorrência pública. Não é como em outros países, que a gente tem de disfarçá-la no superfaturamento e na maquiagem dos orçamentos.
Imperial divertia-se com aquelas conversas que nos situavam entre alguns donos da cocada preta. Eu, não. Sentia-me como se estivesse entre pilantras ungidos pelo baú recheado a dólares e minha cabeça vulcânica processava todo tipo de imagem, num turbilhão horripilante.
Quando saímos, Imperial foi curto e grosso:
- Se você vai ocupar um cargo na Prefeitura, ou aceita as regras do jogo ou será defenestrado como um inconveniente.
Fui-me, achando que ele falava aquilo por desconhecer a natureza do novo governo, que na campanha anunciara uma limpeza com água e sabão na administração pública.
Iludia-me a idéia de que moléculas atômicas devastadoras faziam parte da nova essência do poder no Estado do Rio. Que a rapina do erário estava com seus dias contados e que seríamos um exemplo de gestão honrada, à prova de ofertas indecorosas e das velhas transações eivadas de vícios desonestos.
Na pior das hipóteses, jurei a mim mesmo, eu jamais sucumbiria a negociatas e a trapaças, independente das companhias que tivesse. E disso felizmente posso me orgulhar hoje, 25 anos depois, no quase fim de minha vida pública.
Conflito com o Equador
Conto essa história para oferecer uma outra leitura sobre os acontecimentos que levaram o presidente do Equador, Rafael Correa, a auditar suas dívidas públicas e a questionar o financiamento do BNDES à superfaturada obra de uma hidroelétrica cujas operações foram suspensas por graves erros técnicos.
O que o jovem presidente do Equador fez é o que esperávamos do governo do Sr. Luiz Inácio – a auditoria dos contratos que geraram a dívida externa. Aqui, Lula amarelou: preferiu fechar os olhos e ainda entregou o Banco Central ao todo poderoso Henrique Meireles, forjado num grande banco norte-americano.
O BNDES não foi o único afetado pela investigação, realizada por uma comissão integrada por 7 equatorianos e 6 estrangeiros, entre os quais a auditora Maria Lúcia Fatorelli Carneiro, cedida oficialmente pelo governo brasileiro, três argentinos e um belga.
O dossiê preparado por essa Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público é uma peça de mais de mil páginas, cujas conclusões deveriam ser lidas antes de uma "patriotada" pueril, que só serve para favorecer práticas abomináveis em benefício de alguns graneiros se pátria e sem escrúpulos.
Ele lembra uma prática da qual o Brasil sempre foi vítima: o sistema financeiro internacional liberou financiamentos ao longo de décadas desde que acoplados a obras ou compras de equipamentos norte-americanos. Isso presumia o jogo de interesses em que alguns intermediários enchiam suas burras, enquanto o Brasil embarcava em aventuras do tipo rodovia “Transamazônica”.
Durante mais de um ano, a comissão auditou os processos de endividamento do Equador de 1976 a 2006, trabalho que incluiu a dívida comercial contraída com bancos privados internacionais; a dívida multilateral concedida pelos organismos financeiros internacionais; a dívida bilateral (principalmente com Espanha, Brasil e aqueles que formam o Clube de Paris); a dívida interna; e os créditos concedidos à Comissão de Desenvolvimento da Bacia do Rio Guayas para o projeto Multi-propósito Jaime Roldós Aguilera.
O informe final de 172 páginas constitui uma profunda análise técnica e jurídica que mostra um dos rostos mais sinistros de três décadas de políticas neoliberais. A dívida externa do Equador aumentou de 240 milhões em 1970 para 17,4 bilhões em 2007.
Sobre essa investigação, sugiro ler artigo do jornalista Eduardo Tamayo, da Agência Latino-americana de Informação, publicado no site do Centro de Mídia Independente – CMI.
Nessa matéria,Tamayo escreve:
“A Comissão concluiu pela ilegalidade e, portanto, a ilegitimidade do processo de endividamento. Assinala-se o caráter "odioso" da dívida externa, pois foi contraída por uma ditadura militar (1972-1979). De 1976 a 1982, outorgaram-se créditos ao Equador na ordem de 3,4 bilhões de dólares, dos quais 984 milhões foram destinados ao orçamento da Defesa. A Junta Nacional de Defesa, que foi a maior beneficiária, se negou a proporcionar à Comissão os dados dos créditos recebidos e o destino dos mesmos”.
Empréstimos ilegais
“A dívida externa do Equador tem sido objeto de sucessivos processos de renegociação fraudulentos, nos quais os sucessivos governos aceitaram condições inaceitáveis dos credores, como contrair novas dívidas para pagar antigas dívidas, castigos de mora, altas taxas de juros, anatocismo (pagamento de juros sobre juros), revalorizar títulos de dívida que valiam pouco no mercado, segundo explica o membro da CAIC, Hugo Arias. Os convênios foram redigidos pelos próprios credores e incluíam cláusulas abusivas como renunciar à soberania nacional e aceitar disputas em tribunais internacionais, estabelecer a primazia dos convênios sobre a legislação e a Constituição equatorianas, etc.
Estas condições foram aceitas no Plano Brady para Equador (1993), apoiado pelo FMI, no Plano Adam (Pacto para a troca de Brady a Global, estabelecido em 1999), e em troca dos bônus Brady e dos Eurobonos a bônus Global (2000). Neste último caso, o prejuízo para o Equador foi enorme. Os bônus permutáveis, (Brady e Eurobonos), que somavam 6,3 bilhões de dólares, se cotavam no mercado em 30% (1,58 bilhões). Contudo, se trocavam pelos bônus Global 2012 e 2030 por um montante de 3,9 bilhões de dólares, com taxas de 12 e 10%. Até agosto de 2008, o Equador pagou, por conceito destes Bônus Global, 2,4 bilhões de dólares. As gerações futuras, se não se declarar agora o não pagamento desta dívida ilegítima, deverão pagá-la em 2012 e em 2030.
A Comissão também constatou que vários governos equatorianos cederam às exigências dos credores privados e foram cúmplices de irregularidades e abusos contra a economia do país. Por exemplo, no início da década de 1990, o Equador teve a oportunidade de amparar-se ao direito de prescrição da dívida comercial previsto pela legislação dos Estados Unidos e Londres para os casos de mora por mais de seis anos consecutivos. Isto teria permitido ao Equador economizar cerca de 7 bilhões de dólares de dívida comercial. Contudo, em 9 de dezembro de 1992, as partes equatorianas, representadas por Mario Ribadeneira, ministro de Finanças, Ana Lucía Armijos, Gerente Geral do Banco Central, e Miriam Mantilla, Cônsul do Equador em Nova York, firmaram nesta última cidade um acordo de renúncia unilateral da prescrição da dívida externa. Este convênio de Garantia de Direitos (Tolling Agreement) foi legalizado no mesmo dia por um decreto firmado pelo ex-presidente do Equador, Sixto Durán Ballén, e o Ministro de Finanças encarregado, Sebastián Pérez Arteta. Cabe indicar que por este e outros "méritos" a economista Ana Lucía Armijos terminou como funcionária do FMI.
Outros exemplos que merecem ser citados são as dívidas com os organismos multilateriais. No período 1976-2006, o Equador contraiu 286 créditos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, Banco Inter-americano de Desenbolvimento (BID), Coorporação Andina de Fomento, Fundo Latino-americano de Reservas e Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agropecuário, no valor de 12,5 bilhões de dólares, o que representa 42% da dívida externa pública contratada no citado lapso. Estes créditos, destinados no papel a "projetos de desenvolvimento", vieram acompanhados de condições que deram lugar à "debilitação do Estado e sua capacidade de planejamento, ajustes estruturais, processos de desregulação e mudança de competências ao setor privado prejudiciais aos interesses da nação, e seguindo uma matriz imposta aos países do Sul. Isto gerou instabilidade política e contínuos enfrentamentos de governos com setores sociais", assinala a Comissão.
Um exemplo que ilustra o caráter ilegítimo e fraudulento da dívida multilateral é um empréstimo de 14 milhões de dólares concedido pelo Banco Mundial para "desenvolvimento mineiro e controle ambiental" denominado PRODEMINCA. Com este empréstimo, se reformou a legislação para fazê-la "atrativa" ao investimento privado e se fez um levantamento de informação geoquímica para localizar onde se encontravam as jazidas mineiras com o objetivo de que fossem entregues, mediante concessões, às transnacionais. Ou seja: o povo equatoriano, mediante dívida pública, subsidia a penetração das transnacionais para que venham levar seus recursos naturais e destruir o meio ambiente”.
*Em tempo: por menos disso, em 24 de maio de 1981, a CIA explodiu o helicóptero do presidente equatoriano Jaime Roldós, conforme revelou seu ex-agente John Perkins, no livro Conifssões de um asassassino econômico
coluna@pedroporfirio.com
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