“A lei anistiou os crimes políticos e conexos. A tortura não é crime político em lugar nenhum do mundo. Tenho certeza de que o Supremo terá oportunidade única de fazer com que a história brasileira seja contada de forma não envergonhada, com a punição dos torturadores” –
Cezar Britto, presidente da OAB, ao protocolar ação no STF.
O estranho parecer da Advocacia Geral da União e o pronunciamento “compensatório” do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, nos recolocaram em mais um pântano jurídico, típico de um mundo legal onde a incompetência, a pusilanimidade e a má fé se aliam em prejuízo dos direitos elementares dos cidadãos.
Dentro de alguns dias, o STF deverá se pronunciar sobre o questionamento da OAB em relação ao suposto benefício da Lei de Anistia aos torturadores. Autores da ação, os advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro assinalaram: “É irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo”.
Com a iniciativa, a entidade contesta a mal inspirada defesa que a Advocacia Geral da União fez dos coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, acusados de pelo menos 64 mortes sob tortura em instalações militares.
Nessa peça que compromete todo o corpo jurídico da AGU, a advogada Lucila Garbelini e o procurador-regional da União em São Paulo, Gustavo Henrique Pinheiro Amorim, afirmam que a Lei da Anistia de 1979 protege os torturadores: "A lei, anterior à Constituição de 1988, concedeu anistia a todos quantos, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos (...). Assim, a vedação da concessão da anistia a crimes pela prática de tortura não poderá jamais retroagir".
Para fazer a defesa da impunidade dos torturadores e assassinos, esses ilustres procuradores chegam ao cúmulo alegar a proteção à intimidade das vítimas como argumento para defender os ex-comandantes do DOI/Codi.
- É necessário ao Estado preservar a intimidade de pessoas que não desejam “reabrir feridas”, isto é, não gostariam que determinados fatos do período de exceção viessem a lume.
Ponto de partida
A ação do Ministério Público contra Ustra e Maciel é a primeira a contestar a validade da Lei da Anistia para acusados de tortura. Nela, os procuradores federais Marlon Weichert e Eugênia Fávero pedem que Ustra e Maciel sejam responsabilizados civilmente por mortes no DOI-CODI, principal centro de repressão política em São Paulo entre 1970 e 1976. No período, segundo registros oficiais, 6.897 pessoas passaram por lá, número que pode ser bem maior, considerando suas práticas de braço clandestino da repressão.
Nada insulta tanto às Forças Armadas como essa muralha erguida por alguns recalcitrantes para assegurar a impunidade aos que usaram e abusaram do crime de tortura em suas instalações, durante a ditadura que se impôs pelas armas com a deposição de um presidente constitucional.
Erra redondamente quem se posta como escudo em defesa de alguns torturadores covardes, que despiam e submetiam presos políticos a penosas sevícias naqueles idos aterrorizantes em que a força bruta era a única razão de ser de um regime alimentado pelo abuso de poder, origem do vírus da pusilanimidade, da insegurança e do medo de efeitos ainda hoje sentidos no tecido social.
Quando a defesa da “anistia” desses crimes é formulada por contraposição comparativa com os atos contestatórios pelo presidente da mais alta corte do Poder Judiciário, aí é lícito supor que a ditadura ainda está no sangue dos “gendarmes” civis.
Mais explícita é a posição do ministro da Defesa do Governo Lula, Nelson Jobim, outro que passou pelo STF por nomeação de FHC.
- O que vai ser decidido pelo Supremo não é se alguém é a favor ou contra torturados ou torturadores. A questão é saber se o GRANDE ACORDO POLÍTICO da transição na década de 70, que deu origem à anistia, deve ser revisto interpretativamente ou não.
Por ironia, foi o sacrifício de muitos brasileiros torturados que contribuiu para livrar a magistratura do garrote que ceifou admiráveis juízes, como Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal, Hermes Lima, José de Aguiar Dias e Osni Duarte Pereira, entre tantos próceres de uma Justiça que vem se desfigurando a olhos vistos.
Nada é mais desconfortável do que ver advogados bem sucedidos recorrerem a sofismas para contrapor-se ao clamor de uma história que não pode apagar crimes praticados por agentes de segurança, cujos excessos levaram dezenas de brasileiros à morte.
Estamos falando de violências praticadas no interior de instalações policiais e militares contra pessoas já aprisionadas, imobilizadas e sem a menor chance de escapar das sevícias e das matanças, como aconteceu com o ex-deputado Rubem Paiva, cuja morte é um dos mais cruéis corpos de delito daquele período trágico.
Crimes sem paralelo
Não há semelhança com nenhuma outra situação. Os que praticaram esses crimes faltaram com a própria ética castrense e não o fizeram no escuro da dúvida. Antes, como eu mesmo posso testemunhar, pareciam predispostos a uma sádica extrapolação de suas funções, com o que sobrepunham seus instintos perversos à prática investigativa.
Mesmo as execuções em operações de buscas tiveram o tempero do ódio e da irracionalidade. Os repressores já saiam em campo com a intenção de ELIMINAR os contestadores, alguns mortos depois de imobilizados, como aconteceu com Carlos Lamarca e no Araguaia.
Vale ainda lembrar que os agentes matadores s não se limitavam a levar prisioneiros à morte. Como os bandidos que hoje carbonizam os desafetos, davam fim aos corpos de suas vítimas, ocultando cadáveres e negando aos seus entes queridos até o último olhar. Graças a esse clima de impunidade, muitos familiares ainda não puderam dar uma sepultura digna a seus mortos.
De todos os países deste hemisfério em que centenas de prisioneiros foram barbaramente torturados, muitos até o último suspiro, o Brasil é o único que insiste em negar o julgamento dessa súcia de sádicos celerados. Na Argentina, até os chefões das juntas militares estão purgando por seus crimes. No Chile, o general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte pagou caro como assassino e gatuno, apesar do “ACORDO” que havia garantido a ele permanecer por algum tempo à frente das Forças Armadas e, depois, no cargo de senador vitalício.
Querer passar uma borracha em tamanhas monstruosidades é dar foros de legalidade aos excessos letais de agentes públicos. Aí não importa a forma como a ditadura se desfez. A bem da verdade, os militares voltaram às suas funções constitucionais quando os regimes de exceção já não serviam aos interesses internacionais, financiadores do golpe de 64, encantados com a possibilidade de manterem o domínio com desgaste menor, através de civis mais hábeis, de colarinho ou de macacão.
A tortura praticada por alguns celerados não se enquadra em nenhum viés de cunho político, não cabendo nenhum benefício previsto na legislação de anistia. Se os torturadores (e assassinos) permaneceram impunes até hoje foi por pura covardia dos guardiões das leis e pela inércia de uma sociedade que ainda não se encontrou com o verdadeiro estado de direito.
Agora, no entanto, parece ter soado a hora da verdade.
Inibir a impunidade
Numa observação serena dos acontecimentos, vê-se que age de má fé quem tenta insuflar os militares de hoje contra um procedimento reparador de efeito personalíssimo, que não tem nenhum outro objetivo senão inibir a impunidade e reconhecer o direito dos que há mais de três décadas clamam e esperam por justiça.
Em todos os regimes, é dever do Estado proceder suas investigações nos limites da Lei. A tortura é crime sem álibi. Ela não acontece num enfrentamento, em combate. E a recusa da condenação tem causado desconforto aos militares de hoje, porque de vez em quando estouram casos de violência irracional, como essas sevícias praticadas em Realengo contra um adolescente de 16 anos, por ter pulado o muro de um quartel.
As Forças Armadas deste século deviam ser as primeiras a remover as manchas de sangue que ainda estão cravadas em suas paredes, assim como os supremos pastores forenses têm por condição mínima para o exercício do juízo sereno e confiável a exigência dos quesitos de civilidade e correção na defesa do Estado e da sociedade.
Uma doença incurável?
Em seu libelo sobre a ocorrência deplorável que vitimou um adolescente num quartel do Exército, o coronel-médico Levi Inimá Miranda (LEIA ARTIGO EM PORFÍRIO URGENTE) lembrou a convivência desconfortável com a violência: “A história comprova que nenhum militar, tanto durante os governos conseqüentes ao golpe de 1° de abril de 64 quanto nos governos pós-redemocratização, foi processado, julgado e condenado por crime de Tortura. Quando muito, alguns pouquíssimos foram processados apenas por “maus tratos”.
E vai mais longe:
“Fazem cerca de 5 meses que militares do Exército “entregaram” 3 rapazes do morro da Providência aos traficantes do morro da Mineira, o qual é dominado por uma facção rival àquela da Providência, para serem mortos. Isso nos permite aduzir que militares há que ainda teimam em não aprender com erros, bem como ficam mais uma vez patentes as faltas de comando e de supervisão desses casos.
Em março de 2001, durante instrução militar nas dependências do 2° Batalhão de Infantaria Motorizada, 10 recrutas receberam choques elétricos, com telefone de campanha. Os militares foram processados na corte castrense apenas por “maus tratos”.
Em maio de 2002, durante instrução militar nas dependências da 1ª Companhia de Engenharia de Combate Pára-quedista, 48 recrutas tiveram os olhos vendados, os punhos amarrados para trás, foram desnudados, pendurados de ponta-cabeça e receberam golpes de varas e choques elétricos (telefone de campanha AF-3), estes desferidos nos lábios, axilas, mamilos e genitais. Os militares foram processados na corte castrense somente por “maus tratos”.
Em fevereiro de 2005, um civil foi preso e colocado numa cela do 1° Depósito de Suprimentos e encontrado morto na manhã do dia seguinte, em condições altamente suspeitas.
Até hoje também não aprenderam com as torturas praticadas nos DOI-CODI, com os atentados havidos no Rio de Janeiro que culminaram na bomba do RIO-CENTRO, em 1981”.
Por esses relatos, é lícito supor que a blindagem das torturas pretéritas, por motivos políticos, esteja associada a uma doença incurável que ainda permeia os órgãos de segurança. É como se o ambiente castrense não pudesse prescindir dessa forma degenerada de catarse.
Como estou certo que não é nada disso, que a massa militar profissional é de outra estirpe, ainda espero que, ao fim, ao cabo, as gerações futuras ganhem segurança ao saberem da punição dos que se entregaram, ébrios, ao irresponsável e letal abuso de poder nos porões da ditadura.
2 comentários:
O Sr se deu ao árduo trabalho de ouvir os dois lados.............não estamos em hálitos de Tribunal de Exceção? ópera bufa??
O Sr se deu ao árduo trabalho de ouvir os dois lados.............não estamos em hálitos de Tribunal de Exceção? ópera bufa?? Estar em busca da Verdade Real exige sacrifíos...por favor não me diga: sacrifício foi o dos que morreram pela pátria. Morreram: dezenas e dezenas de jovens militares. Até hoje, sem qualquer pensão.
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