quinta-feira, 1 de novembro de 2007
UMA ANISTIA AMPLA PARA REMOVER O LIXO AUTORITÁRIO (I)
MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 29 DE OUTUBRO DE 2007
“Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada a serviço do Direito. O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas”.
Desembargador Bento Moreira Lima, em carta ao seu filho, cadete Rui Moreira Lima, em 31 de março de 1939
O major-brigadeiro Rui Barbosa Moreira Lima é um dos maiores vultos das nossas Forças Armadas. Sua história se confunde com a da FAB, de que foi precursor. Seu batismo de fogo se deu em plena segunda guerra mundial, nos céus da Itália, onde desembarcou no porto de Livorno com outros 465 homens do Grupo de Aviação de Caça da Força Expedicionária Brasileira no dia 6 de outubro de 1944. Lá realizou 96 operações de combate, teve sua primeira promoção e ganhou suas primeiras condecorações: Cruz de Aviação fita A, Campanha da Itália e Presidential Unit Citation (EUA).
Maranhense, filho de um desembargador humanista, festejou 64 anos de casamento com dona Júlia no dia 26 de outubro passado. Nesse dia, depois de sucessivos temporais, o sol se fez. Foi quando, aos 88 anos, numa tarde inesquecível, recebeu no emblemático auditório da ABI o jovem mestre em direito público Paulo Abraão Pires Junior, presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, acompanhado do também mestre em direito Sérgio Ribeiro Muylaert, seu vice. Com o brigadeiro, mais de mil brasileiros, alvos do arbítrio de um regime que fazia vítimas pela volúpia da perseguição “preventiva”.
Como se tivesse travando um novo combate, agora em terra, e apenas com as armas da razão, o nosso paradigma de patriotismo e dignidade colocava frente à frente aquele que melhor entendeu sua missão reparadora, apesar de calouro no cargo, e uma parcela de nossa história humana, em sua quase totalidade militares que tiveram suas carreiras ceifadas por atos de arbítrio naqueles anos sombrios de tormentas e luto.
Lá estávamos, para testemunhar os depoimentos, o presidente da ABI, Maurício Azedo, a deputada Laura Carneiro, eu e os representantes do senador Marcello Crivela e da deputada Solange Almeida. Na singeleza de sua exposição, o brigadeiro Rui Moreira Lima explicou que convidou o presidente da Comissão de Anistia por uma questão de economia: a grande maioria daqueles que tiveram suas carreiras interrompidas não podiam ir a Brasília saber a quantas andam seus processos de reparação.
O presidente Paulo Abraão respondeu, informando que realizará outras audiências públicas fora da capital. Estará novamente no Rio dia 5 de novembro, numa audiência na Câmara Municipal, por minha iniciativa. Nesse novo encontro, além de dar continuidade às questões dos militares perseguidos, ouvirá depoimentos dos segmentos da sociedade civil, também duramente atingidos com as prisões, demissões, exclusões, exílio, banimento e toda sorte de violência praticada por um regime que alçou ao poder de forma ilegítima, derrubando um governo eleito e consagrado num plebiscito, e rasgando o mais sagrado dos documentos de um país, a sua Constituição.
A Lei violada
No princípio era a Lei. Aos trancos de barrancos, depois de resistir bravamente à conspiração que levou ao suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954; à tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino, em 1955; a duas sedições militares no governo JK (os rebelados foram anistiados e voltaram seus postos), e ao golpe que queria impedir a posse do presidente João Goulart, em 1961, supunha-se que a Constituição de 1946 estava blindada contra novos assaltos castrenses.
O Brasil daqueles dias registrava os melhores índices de desenvolvimento econômico, o mais elevado salário mínimo, a menor taxa de desemprego, os mais luminosos sinais de progresso, com reflexos numa política de educação de grande alcance, na qualidade dos serviços públicos de saúde e até nos primeiros sucessos esportivos com duas copas mundiais de futebol. Então, discutíamos as verdadeiras reformas de base, começando por medidas concretas no campo, sempre dentro da legalidade, da mais ampla liberdade de imprensa e do convívio entre forças políticas opostas. O povo resgatava sua auto-estima.
Para a grande potência do norte, isso era uma ameaça muito maior do que a revolução cubana. Para onde o Brasil fosse, a América Latina iria. A questão deixou de ser interna, para entrar na agenda dos Estados Unidos e suas agências de espionagem e jogo sujo. As próprias tropas, tradicionalmente legalistas, foram tomadas de surpresa por uma conspiração de Estado Maior, monitorada pela embaixada dos EUA, que culminou com um golpe fulminante: em menos de 48 horas, quatro estrelas de todas as armas assumiram o controle das instituições, levando o presidente ao exílio num ato de tal violência que levou o próprio deposto a abrir mão da resistência com que Leonel Brizola pretendia repetir a mesma epopéia de 1961.
Aconteceu o que Luiz Carlos Moreira, capitão de mar e guerra, e hoje advogado brilhante, definiu no ato da ABI como cristalização da ilegalidade e da ruptura do regime de direito. A partir de 1 de abril de 1964 o dia da mentira estendeu-se por vinte anos. Tudo se resolvia com o uso das ferramentas de uma ditadura sem acanhamento. Desde aquele então, milhares de brasileiros passaram a percorrer verdadeiros calvários. Muitos morreram sob tortura e em operações de extermínio, como está documentado no livro “Direito à Memória e à Verdade”, publicado com coragem e serenidade pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Como não poderia deixar de ser, a ditadura nos legou um lixo autoritário manchado de sangue, terror e lágrimas. O restabelecimento do regime de direito ainda é uma conquista tênue, constrangida por sua trágica ambigüidade. Num erro fatal, as novas gerações de oficiais, profissionais por excelência, que não têm nada a ver com o inferno daqueles anos cruéis, parecem agir corporativamente como salvaguarda da impunidade.
Aqueles que mancharam as sagradas fardas de nossas Forças Armadas na prática da tortura e de assassinatos indefensáveis ganharam a anistia, recebendo tudo o que “tinham direito” e desfrutando de todas as regalias. Já os perseguidos, atingidos por todo tipo de arbítrio, até vitimados por portarias políticas só porque pareciam vocacionados para atos de liderança, esses ainda esperam pela reparação devida.
Agora, 43 anos depois da instauração do regime ditatorial, responder em tempo hábil aos clamores dos perseguidos é o grande desafio da Comissão de Anistia, cujos conselheiros trabalham como voluntários, sem nenhuma remuneração, fato que, a meu ver, já demonstra o desdém do Estado em relação a uma missão que é a primeira condição para selar o regime de direito e consolidar instituições perenes।
coluna@pedroporfirio.com
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