sábado, 10 de novembro de 2007
O SEQÜESTRO DO RACIOCÍNIO E O APAGÃO DA INTELIGÊNCIA
“Jamais aceite como exata coisa alguma que não se conheça à evidência como tal, evitando a precipitação e a precaução, só fazendo o espírito aceitar aquilo, claro e distinto, sobre o que não pairam dúvidas”.
René Descartes, filósofo francês (1596-1650)
Nos dias de hoje, nada me assusta, deprime e revolta tanto como o seqüestro do raciocínio. Nada é mais danoso e demolidor. Nada causa tantos males à espécie humana.
Não. Eu não estou falando da corrupção da consciência. Nem da corrosão do caráter. Nem da desfiguração do sentimento. Não me refiro à extinção dos valores morais, éticos e religiosos que um dia pesaram nas atitudes.
Isso o dilúvio da hipocrisia em cascata afogou em sua devastação fulminante. Há sobreviventes que ainda respeitam esses valores jurássicos, admito. Mas são espécies raras, em ostensivo processo de extinção.
O raciocínio seria a última arma da natureza humana. Seria uma ferramenta disponível como uma bússola norteadora. Você podia ter sido amputado de valores tornados subjetivos. Poderia estar inoculado do vício do mais abjeto e desesperado individualismo.
Mas, ao dispor da capacidade de raciocinar, de pensar, respeitaria um novo tipo de cânone, amparado no instinto da sobrevivência. Não importava seu juízo de valores. Mas o cérebro falava mais alto na formulação do comportamento.
Não era o ideal. Antes, a solitária sobrevivência da capacidade de raciocinar se constituía num certo recurso do pragmatismo. Na busca do êxito, o raciocínio pode destituir-se de todo e qualquer constrangimento. Mas, pelo menos, é um elemento de avaliação. Que pode ser usado para o mal, mas também para o bem.
Um certo lamento
Para variar, você pode estar cismando sobre a própria natureza da nossa conversa de hoje. Tantos e tão graves acontecimentos estão ocupando as páginas dos jornais. E, no entanto, cá estou eu empacado na mais recente descoberta: seqüestraram o raciocínio.
É verdade. Eu bem que pensei em escrever sobre o mais novo desastre aéreo – o avc que paralisou a jovem BRA, subtraindo mais 1100 empregos diretos e uma generalizada desconfiança sobre o futuro da aviação comercial brasileira, submetido a um vôo cego que, logo,logo nos levará ao convívio com o inglês nas rotas domésticas.
Queria, sim, confesso, repetir pela milésima vez: a desarticulação da VARIG foi apenas o ponto de partida de uma aventura de notas marcadas. Com o golpe que pôs no chão a mais completa companhia aérea brasileira, o desmonte de todas as empresas do ramo será inevitável, abrindo um filão suculento para a internacionalização do nosso espaço aéreo. Ou você acha que o duopólio vai segurar o tranco?
Queria comentar essa tragédia anunciada, mas a necessidade de falar dos elementos essenciais que levam a esse e a tantos outros desastres me impõe o lamento da falta de raciocínio que assola o país.
Não importa se você é grego, troiano ou não faz parte das guerras e das torcidas apaixonadas. Você pode achar que é o que achar que é, mas não pode abrir mão do raciocínio, como tem feito sem perceber, porque, além da crosta que reveste seu cérebro de meias verdades, há todo um aparato especializado em turvar o ambiente que produziu um imenso cárcere privado, virtual, invisível mas dotado dos poderes da bruxaria cibernética.
Não sei se você terá suficiente disposição para parar e pensar. Nem que seja só por um instante.. Se você estiver disposto a resgatar seu cérebro, bem que poderá retomar sua capacidade de raciocínio. Não precisa mudar quanto ás as suas antigas concepções.
Mas precisa urgentemente balizar suas atitudes na busca do respeito que todos mereceremos. O pior que lhe acontece é abrir sua guarda ao primeiro sussurro que satisfaça seu momento emocional ou seu parco estoque de conhecimentos. Você (como eu) não é obrigado a rezar pela mesma cartilha por conta de uma determinada formação que engendrou suas convicções.
Cérebros travados
O tempo, mais do que ninguém, é a melhor fonte das lições. E o raciocínio é a arte mais apurada da percepção do legado de cada dia vivido.
No momento em que você abre mão de raciocinar trava todas as suas faculdades mentais. Torna-se um cidadão de cérebro terceirizado, facilmente manipulável.
Pior. Renuncia ao que o distingue dos demais animais – a inteligência. Abre mão do maior dos alimentos, o conhecimento. Nessa seqüência de recuos fatais, perde o juízo crítico. Vira um mero repetidor dos outros, principalmente dos que detêm os meios de comunicação de massa.
Vejo que isso está acontecendo em larga escala e em todas as camadas da sociedade humana. Os mais espertos dão as cartas e escravizam os que transferem a eles o direito de pensar e decidir.
Isso é alarmante como um grande vírus da inércia que se alastra celeremente por todos os seres humanos. Vou dar um exemplo: a sociedade democrática nunca existiu. Ela devia ser a expressão da vontade livre das grandes maiorias. E, no entanto, é a expressão mesquinha de uma ínfima minoria.
Não estou falando aqui da hegemonia de uma classe sobre outra. Quem o induz a aceitar a escravidão e a impostura é um bolsão de poucos controladores da mente humana.
Esse núcleo monitor apostou na ascensão da mediocridade e no primado da incompetência na gestão de Estado, obtendo a desfiguração dos poderes republicanos e abrindo caminho para os poderes paralelos, que são os verdadeiros senhores de todos os movimentos.
Conseguiu-se o mais trágico dos desvios – a abolição dos compromissos básicos no exercício dos poderes públicos; e aí não falo só dos que escolhemos pela via do equívoco. De um modo geral, os cidadãos que deixaram de raciocinar estão expostos a decisões ilegítimas, a manobras torpes, ao crescimento da capacidade de sedução obscena.
Qualquer um, que tenha uma fonte de poder, sente-se à vontade para passar por cima de tudo como um trator desgovernado e a sociedade que renunciou às suas prerrogativas críticas acaba aceitando como um fato consumado.
Isso acontece infelizmente porque você, como a maioria dos brasileiros, já não se vale dos elementos vitais, como o censo de observação, a atenção devida, o exercício da percepção, o patrimônio da memória, a essência do raciocínio, o juízo de valor, a faculdade da imaginação, o acervo do conhecimento, a força do pensamento e a expressão de sua própria compreensão dos fatos.
Não sei se você me entendeu hoje. Mas se você parar para pensar, como já referi, verá que tudo de ruim que possa acontecer a todos nós é responsabilidade imperdoável de cada um.
coluna@pedroporfirio.com
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