domingo, 12 de agosto de 2007
POR UM MINISTÉRIO DA SAÚDE E NÃO DAS DOENÇAS
"Chegou a hora de tirar das mãos do médico a seringa, como se tirou a pena das dos escritores durante a Reforma. A maioria das doenças que temos hoje em dia podem ser diagnosticas e tratadas por pessoas comuns."
Ivan Illich (pensador austríaco, autor de “Némesis Médica” e “Sociedade sem Escolas”, 1926- 2002)
Convenhamos: já estava na hora do Ministério da Saúde deixar de ser Ministério das Doenças. Nesse país em que não se escreve o que se fala, ou se escreve por linhas tortas, um choque frontal na questão da saúde pública era o mínimo que se impunha diante da calamidade numa área em que tudo está com sinais trocados, acarretando uma septicemia social.
Digo já era hora porque estou convencido de que, finalmente, por cima de pau e pedra, o Ministério da Saúde está em mãos de quem entende, até pelo longo percurso iniciado na maior escola do ramo – a Fundação Oswaldo Cruz. E o faço de alma lavada.
Como aprendi a conhecer os homens públicos segundo os ensinamentos de Sartre, isto é, pelos sinais emanados de uma única atitude, propus à Câmara Municipal do Rio de Janeiro a outorga da Medalha Pedro Ernesto ao médico José Gomes Temporão, há poucos meses à frente de um Ministério que já se prestou a tudo, até a fazer alguma coisa na defesa da saúde dos cidadãos.
A solenidade de entrega, na sexta-feira, dia 10, foi muito mais do que uma homenagem. O próprio ministro fez questão de aproveitar para expor suas concepções sobre a saúde no Brasil. E o fez de forma didática, até porque, como assinalou, passou quatro meses ouvindo notícias sobre sua indicação. “Isso me levou a aprofundar o diagnóstico de tal forma que, se não fosse nomeado ministro, teria matéria para um livro”.
Doença por inércia
Da minha parte, expus a perplexidade de quem não aceita que um problema tão sério tenha sido tratado até agora sob a égide da incompetência, da ausência de primados conceituais e da prevalência de interesses, privados e corporativos.
A indústria da doença, de caráter inercial, não tem mais como sobreviver. Não há dinheiro que chegue para enfrentá-la e não há governo que consiga responder a uma demanda viciada, que desfigurou o pronto socorro e a própria função do sistema público de saúde.
Se não romper com o modelo atual, o país continuará alimentando um rosário de contradições: os profissionais têm remuneração miserável, o serviço que prestam é precário (principalmente com os plantões semanais de 24 horas, que ninguém agüenta) e o dinheiro público acaba servindo para alimentar a corrupção, como a máfia das ambulâncias e outros desmazelos aceitos como fatos consumados.
Hoje, toda a briga que se trava é para saber como botar a mão nas verbas obrigatórias, definidas constitucionalmente. É verdade que o governo federal gasta proporcionalmente menos com saúde do que outros países, como mostra a OMS: a Argentina destinou à saúde em seu orçamento federal 14,7% de 2003, contra 11,9% na Bolívia. O índice brasileiro é pior até que o do Haiti, que gastou 23%, e o de Cuba, 11,2%. Abaixo do Brasil estavam apenas naquele ano o Equador (8,2%), o Uruguai (6,3%) e a Venezuela (6,4%).
No entanto, o aumento na rubrica não trouxe nenhuma melhoria visível. O orçamento federal de R$ 40 bilhões representava, em 2006, 1,75% do PIB, contra 1,60% de 2003. No mesmo período, porém, em relação ao PIB, os gastos dos estados com saúde saíram de 0,54% para alcançar 0,80%. Nos municípios, houve uma evolução de 0,63% para 0,94%.
É claro que nunca é demais brigar por um orçamento decente para essa área, embora nossa trincheira não tenha nada com a da chamada “bancada da saúde”, formada em sua maioria por defensores de interesses privados.
Aliás, ainda segundo a OMS, no Brasil, 54,7% dos gastos em saúde são privados. O governo responde pelos 45,3% restantes. O inglês e o sueco, por exemplo, precisam tirar do bolso só 14% - os outros 86% são pagos pelo governo. No País, 35% dos custos privados são pagos por meio de planos de saúde e 64% são cobertos pelo cidadão diretamente.
Um novo olhar
Essa briga será inútil se os governos não considerarem que sua função essencial é proteger o cidadão das doenças e, diante de sua incidência, enfrentá-las no seu módulo correspondente. É preciso, como enfatizou o ministro José Gomes Temporão, reformular a cultura que se institucionalizou, numa espécie de roda viva envolvendo profissionais de saúde e os cidadãos.
Rever a cultura atual é considerar parâmetros da chamada reforma sanitária, que parte do princípio de que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Mas essa reforma, que já é um avanço conceitual, precisa ser aprofundada na compreensão de que o dever do poder público é, como já disse, adotar um conjunto de medidas que reduzam a dependência do atendimento curativo.
O ministro Temporão demonstrou ter clareza disso quando teve a coragem de encarar positivamente os direitos reprodutivos, que fazem parte do DIREITO NOVO.
Mostrou também uma visão desassombrada quando teve peito de pôr na ordem do dia o consumo do álcool, assentado não apenas numa tradição, mas, principalmente, numa propaganda inescrupulosa, graças à qual um evento juvenil, como os jogos pan-americanos, teve entre seus patrocinadores uma cervejaria.
Em sua fala na Câmara, ele lembrou que 35 mil pessoas morrem anualmente em acidentes de trânsito no Brasil: dessas, pelo menos a metade tem a ver com o consumo de bebidas.
Temporão também está investindo contra outro poderoso cartel, o dos remédios, hoje dependentes de importação. Sua primeira vitória foi na compra de medicamentos para AIDS. Pelo menos um laboratório já foi enquadrado, o Merck, que produz o Efavirenz, para o qual o governo pagaria este ano R$ 49 milhões, beneficiando 75 mil portadores de HIV. Com a quebra da patente, a situação mudou e não era para menos: O Brasil vinha pagando 1,59 dólar por comprimido e queria uma redução para 0,65 dólar, mesmo preço praticado pela Merck na Tailândia.
É a partir do confronto com os verdadeiros sanguessugas da saúde que o governo poderá redefinir suas políticas e vencer os desafios da manipulação das doenças. A nós outros, repito, cabe dar o apoio indispensável a alguém que pode nos dias de hoje ter para o país o mesmo papel transformador que o médico Pedro Ernesto teve para o antigo Distrito Federal.
coluna@pedroporfirio.com
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