domingo, 19 de agosto de 2007

A ANISTIA COMO SELO DO REGIME DE DIREITO



“Enquanto não houver luz sobre todos os fatos históricos brasileiros, não se completa a construção da democracia”
Carta de São Paulo do MPF/SP
Por mais que já tenha lido a respeito, por mais que tenha ouvido falar, você não tem a menor idéia do que foi o calvário dos perseguidos políticos nos anos tormentosos da ditadura. Falo não só por mim, que fui torturado 16 dias seguidos, mantido preso por um ano e meio e marginalizado do mercado de trabalho. Falo não só por Hélio Fernandes, que foi preso, confinado e sistematicamente perseguido. Falo não apenas por esta TRIBUNA DA IMPRENSA, que foi censurada, proibida, esmagada economicamente e atacada a bombas por terroristas que tentaram silenciá-la com a destruição de suas máquinas.
Falo pelos milhares de brasileiros que sofreram as mais diversas e mais perversas perseguições, que lhes acarretaram a morte brutal, o “desaparecimento”, a forja de “suicídios”, o banimento, o exílio, o desemprego forçado, o isolamento, a vida na clandestinidade, a destruição de suas carreiras e de seus sonhos, a fome, a miséria, as crises familiares e mais um rosário de humilhações.
Muitos desses perseguidos chegaram a viver como se mortos fossem e passaram por constrangimentos inacreditáveis: pilotos da Força Aérea, além de expulsos da farda, foram impedidos de trabalhar em qualquer parte do mundo, porque tiveram seus brevês cassados; outros tantos, em sua maioria jovens idealistas, foram banidos do território nacional, enquanto sofriam pesadas condenações na Justiça Militar.
Naquele ambiente de arbitrariedade e crueldade, muitos foram arrancados de suas casas sem saber por quê. Outros foram vítimas de vinditas pessoais, de denúncias levianas, de excessos de quem queria apoderar-se do que tinham, inclusive de suas mulheres e filhas.
Reencontro em Brasília
Foram muitos desses brasileiros e brasileiras que encontrei essa semana em Brasília, no I Seminário de Anistiados Políticos, promovido em boa hora pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, com a participação da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério da Justiça, através da Comissão de Anistia.
Você não pode avaliar a emoção que senti ao ver o brilho de esperança nos olhos de Tânia Fayal, banida do país aos 20 anos, e ao reencontrar Pedro Albuquerque, que vi de calças curtas no Liceu do Ceará às voltas com perguntas pungentes sobre o porque do sofrimento de nossos conterrâneos.
Posso dizer que nos dias 15 e 16 de agosto de 2007 eu me encontrei com um pedaço da história do Brasil, ao confundir-me com outros tantos patriotas que sacrificaram suas vidas ou pagaram o preço mais alto por conta de um regime de força, que precisava prender e arrebentar, perseguir e acuar, difamar e excluir para garantir a tarefa de manter o nosso Brasil sob controle dos interesses econômicos da grande potência do norte, naqueles idos trágicos de uma guerra fria, suja e calculada.
É como se aqueles homens e mulheres de semblantes graves e cabelos brancos tivessem saído naqueles dias do grande calabouço em que foram soterrados na expectativa da mais sagrada justiça a que se obriga o regime de direito, reconquistado principalmente em cima do sacrifício que passaram. E essa justiça tem um nome: anistia geral, ampla e irrestrita, com a obrigatória reparação de todos os danos que o Estado ditatorial lhes infringiu covardemente, valendo-se das armas, do terror, da impunidade e do silêncio imposto a todos a ferro e a fogo.
Nessa inevitável resposta institucional, selo indispensável à legitimação do regime de garantias constitucionais, não se pode falar em travas ideológicas, preferências partidárias, ranços de nostalgias ou retaliações revanchistas, como muito bem observou o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Isso demonstrou saber também, como demonstrou em sua cristalina exposição, o jovem jurista Paulo Abraão Pires Junior, presidente recém-empossado na Comissão de Anistia, cuja maior preocupação é agilizar os procedimentos para reduzir de 15 para 3 anos o ritual de avaliação dos mais de 60 mil pleitos ali protocolados.
Em nome da verdade
A realização desse primeiro seminário, com a participação dos próprios atores daquele drama de que a nossa sociedade hoje se envergonha, acontece quase vinte anos depois da primeira anistia, que abriu os cárceres e reabriu as portas do Brasil aos seus filhos banidos e exilados.
Mas há de ser o ponto de partida de um novo formatado de discussão, com a abertura sem constrangimento às contribuições e aos depoimentos, como fez de maneira prática o jurista Paulo Abraão: ao ouvir o abrangente documento aprovado pelos anistiados e anistiandos presentes, agendou para o dia seguinte uma reunião com suas representações, a fim de que toda a Comissão de Anistia recolhesse o diagnóstico formulado por quem vive o problema na própria carne.`
O documento aprovado é, por sinal, uma obra prima da análise histórica e incursiona com maestria sobre os vários aspectos postos no contexto da anistia e sua repercussão institucional.
No entanto, como toda peça legal, o arcabouço de leis a respeito da anistia devida deve ser tratado com o máximo de lucidez, transparência e senso de justiça. Ela é um reparo de natureza política e destinada às vítimas do arbítrio. Qualquer tentativa de forçar o benefício em face de alguma brecha ou algum subterfúgio, como aconteceu na segunda metade da década de 90 no caso dos jornalistas do Rio de Janeiro, só servirá como insumo para os que se rasgam de ódio contra o reconhecimento.
Ficou claro para mim, no seminário de Brasília, que a Comissão de Anistia tem bastante clareza a respeito. O Estado deve muito a muitos que foram aniquilados e sobreviveram a duras penas, servindo de bodes expiatórios e de “exemplos” com os quais o poder de ferro amedrontava toda a sociedade e levava muitos ao silêncio covarde.
Há situações graves como de centenas de jovens que ficaram sem futuro e, como não têm como comprovar vínculos empregatícios, podem não ser alcançados pela reparação. É um caso sobre o qual se impõe uma interpretação segundo a doutrina constitucional.
Mas fora do campo demarcado dos que foram realmente perseguidos e prejudicados nos termos do Artigo 8º das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 não cabe forjar compensações indevidas.
Impõe-se assim o mais alto espírito de fidelidade jurídica de parte a parte.
Nas Pegadas de Rondon
Já está indo para as livrarias uma das obras mais sérias sobre nossas comunidades indígenas. Escrito por dois sertanistas que se embrenharam na selva entre 1948 e 1970, quando esse era um trabalho absolutamente heróico, “Nas Pegadas de Rondon” nos traz de volta Hélio e Ivete Bucker. Os realmente interessados na questão indígena não podem deixar de ler esses depoimentos editados pela Entrelinhas.
Bloco Partidário
Será lançado hoje, às três horas da tarde, no Hotel Glória, uma frente partidária, autodenominada “Bloco de Esquerda”, tal como ele já existe na Câmara Federal. É formado pelo PDT, PC do B, PSB, P MN, PHS e PRB (partido do senador Crivella). Para ser mais correto, esse bloco, que é importante no contexto político, poderia ser chamado de “Alternativo”. Porque de esquerda, com alguns partidos sem esse perfil, ele não pode ser denominado, a menos que já comece abusando da semântica.
coluna@pedroporfirio.com

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