
O grito de Gabeira levou à queda de Severino. Já o de Joaquim...
"Se começássemos a dizer claramente que a democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez pudéssemos nos entender melhor."
José Saramago, escritor português, Prêmio Nobel de Literatura.
“Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”.
Darcy Ribeiro, grande homem público brasileiro
É o fundo do poço. Já não se pode falar em podres poderes. Há que enfatizar: PODRES PODERES EM ADIANTADO ESTADO DE DECOMPOSIÇÃO.
Por menos disso, a santa madre igreja encheu as ruas com as marchas das famílias, com Deus pela liberdade, oferecendo opinião pública para a derrubada de um governo constitucional naqueles idos tormentosos de 64.
É o fundo do poço e não há para quem apelar. Nem para o verde da tropa, nem para a meninada de cara pintada, nem para a dissoluta classe operária, nem para a empolada “sociedade civil organizada”.
A tropa já foi desmontada pelos mesmos que a inflaram, usaram e abusaram quando dela precisavam para tolher os patrióticos sonhos de independência nacional e transformação social.
Os meninos de hoje já nascem envelhecidos pelos cantos das sereias. Ou estão no mundo da lua, perdidos na noite das fantasias alucinógenas, ou domados pela paranóia do gargalo do amanhã seletivo, ou capitularam pelas ofertas de algumas migalhas, nos perversos aparelhos políticos das entidades acadêmicas que um dia fulguraram.
A classe operária virou o marisco massacrado pelo mar e o rochedo. Suas cidadelas fizeram-se antros vulgares de pelegos posudos e canalhas, sustentados pelo imposto sindical, pelo FAT e pelo delírio da mais cruel ficção – o companheiro no topo tornou-se o ópio das massas.
A sociedade civil organizada está em concordata. Mal se sustenta sobre as pernas e, com mais discrição pela palidez do seu vulto senil, entregou-se a um obsequioso comportamento contemplativo.
A remedá-las, sob a égide da trapaça, pululam os profissionais do mais recente grande negócio da modernidade – a penca de ONGs empalmadas por espertos falsos salvadores sociais, inventores da solidariedade profissionalizada.
Não surpreende que o Congresso Nacional tenha se convertido num valhacouto de viciados espoliadores do erário, dados a todo tipo de excrescência, do saque patrimonialista explícito e descriminalizado à fartura das generosidades com o dinheiro público, na terra, no céu e no mar.
Surpreendem menos ainda os espetáculos deprimentes protagonizados pelos maiores do Judiciário, ocupado hoje, da segunda instância para cima, por togados de poucas luzes, nenhum caráter e conhecimentos jurídicos precários, em função do que cada um faz sua própria leitura das leis. Na redoma de uma intocabilidade autoritária, tais empolados magistrados submetem o país a tantas aberrações que até entre eles tornou-se impossível evitar a exposição da roupa suja, como no futebol, conforme analogia da nossa magna patativa.
O que estamos presenciando ao vivo e a cores, em tempo real, com nossos próprios olhos, é tão difamante que configura a falência múltipla do Estado dito democrático, de direito.
É dramático constatar que esse regime político é altamente vulnerável à sanha dos mistificadores, numa mescla de ilusões e hipocrisias.
Pode-se dizer qualquer coisa de quem quer que seja, mesmo dos titulares dos podres poderes.
Mas todo o dito fica por não dito nessa democracia de ouvidos moucos e blindagens camufladas. O colega perde o controle e diz poucas e boas do magistrado a quem a nação foi apresentada pelo zelo na proteção de um banqueiro já condenado por alguns dos seus delitos. Mas daqui a uns dias, não se falará mais nisso, não se fará nada em conseqüência disso.
Sem as premissas razoáveis para dispor da gestão das leis e decidindo ao seu alvedrio, sem terem sido submetidos a um concurso ou a uma seleção criteriosa, os ministros das cortes superiores de Justiça são dotados do bônus da total intocabilidade em seus cargos, nos quais permanecem até os 70 anos (o Congresso, irmão gêmeo do Judiciário, pretende garantir-lhes mais 5 anos de idílio paradisíaco).
Escolhidos em eleições que não podem ser auditadas, onde o voto secreto foi substituído por urnas secretas, com muito dinheiro derramado em campanhas milionárias, ou abençoados pelas máquinas de chapa branca, nossos parlamentares se dedicam à pilhagem dos recursos públicos, sob a divina proteção das normas que fixam em causa própria, num turbilhão de safadezas e ignomínias.
Os titulares do Executivo não ficam atrás – ou melhor, vão na frente – na esteira de negociatas e favorecimentos compensados por propinas gordas, percentualmente maiores do que as pagas aos garçons.
Em todos esses podres poderes prosperam os mais indignos e subservientes, os capachos de ocasião, os “bons companheiros” de maus costumes, os cúmplices e testas de ferro dos colarinhos brancos.
Daí termos chegado aonde chegamos, num mato sem cachorro, num deserto de homens de bem, num deslumbrado bordel de pouca vergonha, num circo em que os palhaços acotovelam-se na platéia, enquanto os malabaristas e os ilusionistas comandam o espetáculo.
Esse é o fundo do poço, a moral em concordata, a honestidade na clandestinidade, o patriotismo nas calendas, o espírito público alcoolizado.
Esse é o retrato colorido e sem retoque de uma nação inerte, domada, iludida, derrotada pela própria pequenez, fragilizada pela individualização exacerbada dos seus anseios, deformada pela transformação dos sonhos maiores em ambições menores, uma nação surda e muda, prostrada ao Alzheimer coletivo.
O que o magistrado indignado disse do colega é apenas a ponta de um tenebroso iceberg. Essa farra das passagens é igualmente um mero sintoma da síndrome da mais assumida imoralidade jamais reinante na história republicana brasileira.
E tudo porque o povo brasileiro – você, inclusive – já perdeu a capacidade de se indignar e reagir.
coluna@pedroporfirio.com